Leitura: Os Idos de Longinus

Os trinta e tantos anos que se passaram não foram gentis com Longinus de maneira alguma. Por alguns momentos, o clã Fafnir cercou os longinianos em Margrave e houve a certeza de que o Império Sagrado seria destruído naquele momento. Mas o destino carteou uma surpresa decisiva quando o quarto incarna, Shu, foi descoberto e invocado pelo próprio Hierofante Ludgast, que já havia atravessado seus noventa anos. Tomado pelo poder divino, Ludgast confrontou Rama, líder incontestável dos Fafnires, numa batalha espiritual furiosa e espetacular que durou pouco mais do que alguns segundos e terminou com a morte de ambos, espadas cruzadas diante das multidões. Um grande choque de retorno e as lâminas dos últimos kishi extinguiram o restante do clã Fafnir numa única noite. Longinus inteira uniu-se em oração e a aurora do dia seguinte espalhou o sangue do clã Grendel e de muitos outros clãs reptantes sobre a terra longiniana em nome do grande hierofante, e as flores brotaram rubras quando despontou a primavera.

Ludgast foi sucedido pela kishi Neman, uma heroína de guerra de disposições e princípios desconhecidos. Sua selvageria se revelou quando, na cerimônia de sucessão e vestida com os ornamentos imperiais sagrados, ela assassinou a sangue frio e a um só golpe um reptante adepto que ousou a tocar para lhe abençoar.

Sob a guarda da Imperatriz Neman, porém, Longinus pôde prosperar e se reconstruir. Em pouco mais do que dois anos, o império recuperara o rubor que tinha antes do início das guerras contra os Fafnires, há quase um século. Muitos guerreiros abandonaram suas espadas para lutar pelo império, desta vez plantando, colhendo, reconstruindo e reconsagrando as terras maculadas pela feitiçaria maléfica dos reptantes.

O renascer do Império Sagrado de Longinus passou quase despercebido para os regentes dos outros países, mas não para Cédara. Tratados comerciais há muito esquecidos foram novamente levantados pelos aristocratas longinianos. Ivoire chegou a tentar uma aproximação, mas a Imperatriz Neman não havia esquecido, tampouco perdoado a ofensa de Verne há tantos anos.

Assim que teve recursos (fim de 734 D.F.), Neman lançou uma cruzada de kishi para perseguir e destruir os desertores de Longinus na guerra como exemplo. O infeliz ato resultou na morte de vários longinianos em terras farisienses, ivoreanas e cedarianas, muitos dos quais haviam já constituído famílias. Muitos cedarianos (e também a imprensa) ficaram aterrorizados com a total falta de clemência de Neman para com os fugitivos de guerra – a imperatriz passou de heroína a uma tirana em poucos meses. A cruzada obviamente não conseguiu desenterrar todos os traidores, e persiste até os dias de hoje.

Reconhecidamente, Longinus mantém uma aliança informal com Cédara e Rublo; entretanto, ninguém sabe o que se passa na cabeça de Neman e qual será o próximo passo na sua saga de orgulho e destruição.

Transcrição do Tomo das Eras, LI

Da terra, eis, veio um grande espírito
A todos lembrou a pedra da criança
Uma vez, o espírito tomou a forma das coisas
E ascendeu aos céus
O árbitro que virá pelas almas dos desencantados
Após as palavras lidas
E o mal feito.

A volta.

Retornei a nosso orquidário (os gentios o batizaram Mirventura) com os olhos tristes, nem a Viola pude ter um sorriso. A ausência de qualquer descoberta está acabando comigo e pela primeira vez pensei que esta escapada pode ter sido um grande problema.

Durante a noite Viola veio a mim e contei toda a verdade a ela. Estava desesperado e me sentindo no final das forças, sem condição de pensar em como escapar. A nobre dama prometeu que me ajudaria, para minha surpresa, e no dia seguinte, enquanto aprumava um buquê, falou baixo a mim através de uma parede de folhas.

'Há um caminho', ela disse, 'ao sul, que levará seus pés para um porto livre. Lá poderá convencer alguém a te levar por algumas rúpias. O adepto passa longe deste ponto em sua rota normal, mas já o vi passando lá algumas vezes. Vá com cuidado.'

'Eu ainda tenho interesses por aqui', respondi a ela. 'Fico ainda uma lua.'

'Não. Vai, aqui teu coração não pertence', ela disse. 'Antes que pertença a ti meu coração.'

Pude pronunciar o nome dela ainda uma vez antes dela sumir nas folhagens. Parti, chorando, naquela noite, carregando comigo o rosário que ela tinha deixado, profanando sua fé e fazendo um último mal a Viola, talvez a última mulher que eu tenha amado.

Leitura: A História de Hepzibah, parte 4

Uma flecha cortou o nada em que se abrigava. Atingiu ao longe a aura que o prendia à terra e ele viu que ainda havia... Seu poder feiticeiro se libertou numa coluna de chamas vermelho-vivo abrasando o chão e tudo, e da certeza da morte ele despertou para a batalha.

O arqueiro vinha com guerreiros que berravam contra os pardos, golpeando com suas espadas em raios de aço e ar que atingiam ao longe. Antes que pudesse tentar se defender deles, pararam de atacar. Não queriam matá-lo. Pegaram os ivoreanos voltando de uma missão, isso sim, e a eles destruíram. Ficaram ao longe fitando-o à distância. Não tocaram os pardos: suas geomancias e flechas o fizeram.

Hepzibah se levantou e tentou falar a eles. Ouviram os dragões um guincho, como uma palavra de ódio, mas os olhos do meio-djin mostravam-se agradecidos. Aproximaram-se com cautela. Um colheu do chão uma pequena lis-de-Ivoire. Não pensariam em nada melhor. O jovem dragão ofereceu a lis a Hepzibah e ele a tomou em mãos trêmulas. Sorriu, se é que sabia sorrir.

Levantou-se de seu limbo e juntou-se aos dragões. Havia um entendimento irracional entre eles, uma aliança inconsciente. O arqueiro chamava-se Fiachra e era o líder de um grupo de dragões-da-República que ficaram ferrados e presos em território ivoreano. Terroristas e assassinos, uma vez uniram-se à XV para explodir uma usina em Hevelius. Hepzibah juntara-se a eles muito depois disso, quase cinco anos depois. Já havia findado a Décima Quinta e tudo que remetia a ela. Era o auge da guerra dos odenianos com os ivoreanos. Os dragões não estavam em lado algum e odiavam as duas partes, os ivoreanos mais do que os odenianos.

Hepzibah permaneceu unido a eles, lutando contra os odiados ivoreanos até que todos estavam mortos, quase dez anos depois. Viveram juntos todos os desfortúnios de quem batalha uma guerra que já havia sido perdida. Fiachra morreu inútil no meio do fogo, suas flechas caladas quando um dia cantavam livres antes de enterrarem-se em sangue pardo. Hepzibah o Improvável (como o chamavam) foi o último dos Dragões de Chumbo de Fiachra, e herdou a disciplina pálida e fria do ódio dos corações humas. Havia aprendido a luta dos homens. Sua força oculta de meio-djin o fazia poder carregar duas espadas quando todos levavam somente uma. E eram grandes espadas - espadas de Dragão. Hepzibah não podia parar de lutar, morreria se o fizesse. Aprendeu o ódio, e não mais viveria em paz sem exercer sua única satisfação. Tinha medo de destruir todos os ivoreanos: não sobraria ninguém para ele ganhar seu dia.

Rumou para Odenheim. Haveriam de aceitar duas espadas contra os pardos. Isso foi em 716 D.F., as fronteiras estavam tomadas, Capela ocupada e as tropas de assalto terrestres avançando duramente para Vercel.

Leitura: A História de Bácari e Trói

Haviam praias, haviam peixes, haviam pescadores. Haviam Bácari e Trói, desde muito. Os antigos acompanhavam os cardumes por terra e migravam pela costa leste da República. Levou muito tempo até que alguns pontos fossem descobertos como de convergências de vários tipos de peixe ao longo do ano. Na verdade, foram descobertos dois destes paraísos da pescaria: Bácari e Trói, obviamente.

Os nomes vieram das duas espécies de peixe que mais apareciam nas imediações, o Bacará Real – grande, cinza e lento – e o Totrói – com a protuberância óssea no focinho que mais parece uma espada.

Os pescadores ficavam metade do ano em Bácari, metade do ano em Trói. Muitos tinham uma namorada em cada cidade. Alguns tinham uma família em cada cidade. Muitos tinham pouca ou nenhuma idéia de quem era seu pai, mas as cidades prosperavam e todo mundo se conhecia. Fizeram escolas em Bácari, um pequeno teatro em Trói, e já vinha uma geração daqueles que estudaram fora, poetas, médicos, engenheiros, que voltavam para trabalhar nas suas cidades de origem.

Na época em que os ivoreanos investiram na madeira de Faris, o conselho em Belgrade decidiu que seria interessante para o futuro do país que existisse uma grande ferrovia ligando Glenária e Bácari.

O conde de Trói fez um escândalo. Alegou que Trói era muito mais tradicional, que a população era maior, que era completamente ilógico levar os trens para Bácari quando Trói estava ali, mais perto e mais interessante. A população fixa e simples não entendeu muito bem a história da ferrovia e no mais, eles queriam que os bacarenses se ferrassem, mesmo.

O barão de Bácari prontamente iria se defender dos argumentos do outro, mas aí ele soube que o plano da Estação Ferroviária Primeira de Bácari colocava o prédio bem no lugar onde atualmente ficava sua mansão com jardim de inverno. Entretanto, ele foi forçado a manter sua posição pelos intelectuais de Bácari, que queriam a ferrovia e ameaçavam amotinar-se sobre o barão.

Como tudo que acontece em Faris, os Dragões da República foram chamados para mediar o impasse. Descobriram que cada cidade tinha um conjunto diferente de virtudes e defeitos, mas nenhuma era melhor do que a outra em absoluto. Um Dragão jovem chegou a sugerir que decidissem o destino da ferrovia tirando a sorte nos dados, mas ninguém deu ouvidos a ele. Grande erro.

Ficou acertado (bem à moda dos Dragões) que haveria uma competição entre quatro espadachins – dois representando cada cidade. Quase todos os pescadores não tinham quase treinamento, em absoluto, com a espada, e se perguntaram se não seria mais interessante uma competição de pescaria. Depois alguém lembrou que ninguém realmente morava em um só lugar entre os pescadores e iria ficar difícil escolher que lado iriam representar. De fato, os pescadores nem foram consultados a respeito da tal ferrovia.

Surpreendentemente, os escolhidos para defender Bácari foram dois jovens filhos de um pescador que lá residia, enquanto os escolhidos de Trói foram o irmão do conde, Guntram de Trói, um aventureiro jovem e forte que bandeava com os dervixes do norte, e Nila, uma adepta estrangeira que fez de Trói seu lar.

Guntram e Nila destruíram os escolhidos de Bácari facilmente, primeiro a golpes calculados com as espadas de bambu, depois a pauladas mesmo, já que eles não se rendiam. Os filhos de pescador de Bácari foram arrastados, inconscientes, do ringue improvisado armado perto do Poço das Botas. Fazia um sol rachante.

No dia seguinte, festa em Trói. O conde anunciava ao populacho as melhoras que a ferrovia traria (e depois de um tempo, basicamente do quê se tratava, já que todos estavam interessados). A bebida corria solta, ninguém trabalhou, os peixes dentro d`água até estranharam o fato de não ter havido o genocídio diário. Todos os troianos ficaram animados com as obras, com os trens, e com a nova possibilidade: viajar.

Quando anoiteceu, um grupo compacto de Dragões e citadinos de Bácari chegou na cidade, para falar diretamente com o conde. Quem viu, das casinhas com as lamparinas acesas, viu que boa coisa, não era.

O conde voltou pra casa cheio de amargura no coração. O torneio havia sido considerado inválido, porque o barão de Bácari conspirou contra a própria cidade colocando filhos de um pescador no torneio ao invés dos grandes espadachins da Academia Real de Heilwig de Espada Odeniana, que, apesar de pequena e recém-chegada, contava com um bom número de esgrimistas talentosos. Como todo bom filho, Guntram tomou as dores do pai. Juntou seus amigos dervixes e num ato maligno de vingança, fizeram um arrastão na costa, no meio-caminho entre Trói e Bácari, justamente na época da reprodução dos bacarás.

Surpreendentemente, ninguém soube do crime a princípio. Mas sua conseqüência foi muito pior do que o esperado. A escassez atacou Bácari com violência e quase todas as famílias vieram para Trói. O preço do peixe inflacionou de uma maneira incrível, e ninguém queria passar fome; além do mais, muitas mulheres encontraram as “outras” e saiu porrada pela cidade inteira. Mais além do mais, Guntram, completamente bêbado, admitiu ter passado a rede nos bacarás e escapou por pouco de morrer na mesma noite. Depois que a notícia se espalhou, botaram fogo na casa do conde. O caos se espalhou pela cidade toda. A Guerra do Peixe durou três dias e duas noites.

Quando a poeira baixou, Trói estava em destroços. Quem não assumisse um lado da briga era considerado covarde e não era bem-vindo em nenhuma das cidades. Quem fosse de Trói, não entrava em Bácari, e vice-versa. Muitos pescadores tiveram que escolher entre dois amores e até hoje não sabem se fizeram a escolha certa. Outros têm certeza. Outros estão morrendo para voltar e não podem.

A ferrovia não foi construída e não se voltou a falar no assunto. Tiveram rumores de que nunca houve projeto de ferrovia alguma. Mas o problema de Bácari com Trói tornou-se folclórico e os moradores de uma cidade falam horrores dos moradores da outra.

Guntram e seu pai, depois do incêndio e ao que tudo indica, mudaram-se para Belgrade do Norte assim que a cidade foi construída. O garoto cresceu, e por fim se arrependeu do que fez, mas já era tarde.

Artigo: O Estilo Divisionista

A poesia veruniana do quinto século implorava por uma arte nova, uma arte vibrante, enérgica, e sobretudo, uma arte que não fosse óbvia e uma arte difícil, intrincada, que poucos pudessem dominar. Foi Seurat de Drift o inventor do divisionismo, um estilo de pintura técnica que envolvia o uso de pequenos pontos de pigmento colorido para formar uma imagem à distância. O estilo divisionista é caracterizado pela Névoa, um elemento onipresente em todas as suas artes. As coisas são vistas através do que parece ser uma camada espessa de nuvens: muitas vezes são o que não parecem ser à primeira vista; muitas vezes são duas ou três coisas ao mesmo tempo. Muitas vezes o artista não especifica o que pintou e hipóteses são levantadas até os dias de hoje.

A dúbia pintura divisionista foi usada como protesto no início do século por artistas dos dois pólos de Odenheim. Títulos sugestivos eram acompanhados de pinturas que mostravam duas faces, sendo uma delas uma crítica ou ridicularização de Meredith ou de um dos seus. Era como uma mensagem secreta, que poucos poderiam entender; como uma crítica ferina escondida que poupava a vida de seu criador. Muitos consideravam

É verdade que alguns divisionistas têm trabalhos considerados revolucionários até hoje. Figuras que despertam a imaginação e o subconsciente mudam ao longo das eras na concepção das pessoas. Muitos trabalhos que tornaram-se subversivos por esse processo foram destruídos pelos agentes da coroa.

Os campanários ainda não me abandonaram.

Nem em mente, nem em coração. Nossas orquídeas estavam os decorando, 'plantadas' em roseiras verticais nas quais pendiam por cima das pedras graníticas e nuas. Eu já via os raios descendo por sobre aquela capela, a luta dos adeptos contra o avantesma, a submissão e o poder. Por um momento um pensamento fulgurante e revelador sobre aquilo se apossou da minha cabeça, me fazendo ter uma compreensão inteira da situação segundo os planos de Maeve para nós. Mas como se proibido, aquele pensamento me fugiu por inteiro, deixando somente o espaço vazio atrás de si. Isso vem me acontecendo com assuntos menores há algum tempo, mas nunca uma compreensão esquecida me atingiu tanto quanto essa. Foram segundos de êxtase de entendimento nos quais eu não tive tempo para memorizar.

Os céus, brandos com as nuvens correntes de Rublo, queriam me dizer alguma coisa. Eu estava inútil para compreender, enxergando apenas o que estava dentro de mim. A viagem de volta passou em um suspiro.