Artigo: Os Vestra

Os vestra, seres agraciados com um contato quase físico com os Altíssimos, existem discretamente entre o alto clero maevita. Poucas pessoas sequer sabem de sua existência. Em seu estado puro e mais poderoso, eles formaram uma espécie de ordem de elite nas guerras lúmicas que findaram a segunda civilização. Hoje, passadas muitas gerações, eles são uma espécie de representantes físicos de deidade, entesourados pelos hierofantes e cardeais como relíquias sagradas de um tempo em que Maeve não era tão ausente.

O grande poder dos vestra é a capacidade de realizar milagres que eles mesmo desconhecem, e a capacidade de criar mandalas originais, fazendo a energia divina que permeia tudo materializar-se e colapsar, causando grandes estragos. Eles também são muito resistentes à feitiçaria e boa parte deles é completamente fanática em suas crenças, apontem elas para o lado que for.

Até a puberdade (que acontece ao redor de 12 anos), o vestra é bastante parecido com um huma; diferenças são cabelos muito finos e frágeis, pele mais clara que o normal, unhas de aspecto levemente metálico e veias aparentes de cor prateada. Eles, muitas vezes, são marcados no nascimento com símbolos de proteção que, muitas vezes, são permanentes.

Quando atinge uma certa idade, o vestra passa por uma mutação dolorosa em que seu rosto ganha aparência vítrea e consistência quase metálica, ou cristalina. Ele não brilha absolutamente nada, mas é opaco somente porque reflete-se muitas vezes dentro de si mesmo. A face torna-se uma máscara que lhes inflinge certa dor quando movem os olhos e expressam-se: por isso, os vestra costumam ter poeira reluzente de si mesmos nos cantos dos olhos, como vidro esmagado. Todos os vestra crianças temem e anseiam ao mesmo tempo por sua transfiguração, que é uma manifestação de poder puramente divino. Muitas vezes o 'raio de vidro' desce em direção às costelas e transfigura um braço, ou uma parte do tronco; em outras, a mutação agonizante faz o vetra ter a cabeça de um 'elefante', ou faz seu rosto tornar-se uma máscara surreal e disforme, sem expressão ou com formas bizarras. Uma comitiva de adeptos de alto escalão sempre vela pelo vestra quando ele está se transformando - geralmente aos berros. Muitos vestra pedem para serem mortos se vierem a adquirir aspectos bestiais.

O resto de seus corpos segue de perto sua ascendência huma. Hoje em dia, é possível que só existam vestra homens, já que o nascimento de uma menina vestra é uma ocasião raríssima. É também significante o número de vestra que nascem com deficiências, não podendo andar ou mover os braços. O filho de dois vestra de geração fraca nasce com a fronte de prata, mas morre nos seus primeiros dias, incapaz de respirar por si próprio. Por outro lado, o vestra saudável, filho de um outro vestra com uma huma, pode alcançar três séculos de vida se não contrair nenhuma doença.

Movidos por uma espécie de luxúria ancestral depois que amadurecem, muitos deles são indisciplinados e selvagens; mesmo os mais meditativos têm rompantes de instinto. O sangue vestra é forte; um filho de um vestra com uma huma normalmente é vestra, mas é difícil que a huma engravide.

Aparentam pesar bem menos que humas de seu tamanho. São frágeis de compleeição, e dizem que seus ossos são ocos. Por outro lado, quando pisam o chão, pesam um exército, muitas vezes mais do que deveriam, numa mostra clara de misticismo. Eles podem controlar este efeito (eles o chamam 'Manifestar') de maneira limitada, mas para eles natural como andar. Eles também manifestam um segundo efeito mais incrível ainda: eles conseguem tangibilizar suas almas para fora de seus corpos, principalmente próximo aos dedos das mãos, formando manipuladores como garras, cordões e ganchos feitos de bolas de luz efêmera. Este efeito, para a maioria dos vestra, é frágil e lento, além de perigoso. Eles também têm o controle de suas almas para abri-las à influência das luas quando quiserem, bem como fecharem-nas. Eles não podem, contudo, evitar ficarem enluados depois que sofrerem suas Maldições Ancestrais simplesmente fechando suas almas.

Suponho que os vestra tenham ainda um terceiro poder: tocando seus dedos na testa de uma pessoa, eles seriam capazes de enevoar sua mente e fazê-la esquecer de eventos recentes. Esta afirmação, faço baseado em histórias que ouvi, e pode não corresponder à realidade.

Os vestra têm uma mentalidade que lhes capacita a deduzir uma Mandala Prima sem sequer conhecer seu Altíssimo. Eles conhecem as Mandalas como uma linguagem, não como desenhos. Muitas vezes o vestra fica surpreso ao conhecer o patrono dos milagres que invocava há décadas. Eles são paladinos naturais sem nunca terem sido feiticeiros, e muitos são obsessivos em suas crenças, repetindo orações e poesias incessantemente. Em Ivoire, os vestra têm a mentalidade que são criaturas místicas e privilegiadas, e que têm o dever de manter as rédeas da história sob controle. Eles são os mais terríveis e assustadores, fanáticos que se consideram perfeitos sob os olhos da Deusa.

Os vestra batizam-se como Oradores de um substantivo inspirador (Orador da Clareza, Orador do Silêncio, Orador da Areia), e normalmente incorporam o nome da lua sob a qual nasceram (como "Orador do Silêncio, Onfalian"). Os adeptos usam o pronome 'Venerável' para referirem-se a eles. Vestra rebeldes ou fugitivos escolhem nomes humanos, mas eles geralmente são péssimos para fazê-los sem despertar suspeitas: muitas vezes são incapazes de aceitar nomes que julguem comuns, e escolhem nomes aristocráticos ou nomes de santos reconhecidos. Vestra que se tornam adeptos geralmente criam derivações de seus cargos para tornarem-se seus nomes, como 'Marcard" para Cardeal, "Ispolis" para Bispo e semelhantes.

Vestra são naturalmente vaidosos e ofensivos romanticamente, muitas vezes quase violentos. Os mais fanáticos tendem a ter uma preocupação neurótica com os outros, que sempre acontece em níveis extremos mas nunca ameaça a vida do vestra: eles têm um instinto de sobrevivência tão grande quanto seu instinto de reprodução. Ouvi uma vez uma história em que um vestra inconsciente teve seus poderes disparados em defesa de sua vida, como se o controle destes viesse de outro lugar, de outra mente.

As armas de suas grandes guerras do passado, espécies de adagas deíficas de gume duplo, acompanharam gerações e chegaram até os vestra de hoje conservando seus poderes quase épicos, quase sempre abençoadas por mais de seis Altíssimos. Os vestra nascem com uma noção interna de duelos com estas adagas, muito diferente de qualquer luta vista de outra forma em Natal, uma forma de combate baseada em uma postura ereta com a adaga segura entre dois dedos, que salta para golpes rápidos e embrutecidos antecedidos por orações. Imagino que este seja uma espécie de presente oferecido pela Deusa que não lhes foi tomado com todo o tempo que se passou.

Existem registros que indicam que a existência dos vestra foi revelada ao povo uma vez na história de Ivoire, e outra na história de Odenheim. Houve caos enquanto todos quiseram as bênçãos do ser divino, e após o tumulto e o desaparecimento do vestra, todos aparentemente os esqueceram. Talvez tenham sido vítimas de uma versão maior do poder que eu suponho que tenham.

De qualquer forma, pouca gente sabe mais do que isso sobre os vestras. É possível que mesmo eles saibam pouco sobre eles mesmos, ou saibam somente o que lhes foi ensinado. Lendas antigas e quase desconhecidas falam que, onde hoje é Veruna, um dia existiu um grande estado vestra, uma regência independente com castas de guerreiros divinos, e que antes deste estado vestra lá existira uma habitação de anjos, e que aquelas terras seriam as mais sagradas deste mundo. Em Longinus, hoje, muitos vivem enclausurados em um palacete em Margrave, fechado ao sol e ao povo, chamado 'Ondécima Casa' ou 'Casa Onfalian'. Não se sabe de seus atos ou passado em Faris, Odenheim e Cédara.

Artigo: A Civilização Damdaran

Talvez um dia, nós tenhamos que dividir todo nosso espaço com a civilização damdaran, que, apesar de tímida e reclusa, cresce cada vez mais em seus recantos nas terras baixas de Cédara e na costa oriental de Faris; são quase desconhecidos em outros cantos do mundo.

Damdari são semelhantes a nós, mas são menores, mais esguios, e têm a pele mais escura, geralmente em tons de castanho. Seus cabelos são lisos, geralmente castanho-claros ou cor-de-terra: eles geralmente os usam soltos. Seus rostos são infantis e finos; muitos ostentam narizes um pouco compridos. As orelhas dos machos, bem como as partes laterais de seus rostos, muitas vezes assemelham-se à de uma outra conjuração. Quase todos os damdari machos morrem de vergonha de suas orelhas e usam os cabelos por cima delas quando em meio aos humas. As fêmeas têm orelhas humiformes pequenas e usam cabelos curtos bagunçados.

Gostam de grandes áreas abertas e planícies; são estritamente vegetarianos e podem viver mais de duzentos anos. Eles tiveram participação ativa no conflito contra os djins e existem em Natal há muito mais tempo que nós. Na época, serviram como mensageiros, cavalariços e espadachins. Eles afirmam que aprenderam o titani de um santo de armadura de ferro assim que seus primeiros chegaram a Natal; eles os ensinara enchendo suas bocas de pólen. A maioria fala ambas as línguas, o titani e o alvalli, e alguns, principalmente os descendentes de suas castas mais guerreiras, têm noções de daoi, a língua proibida dos djins.

Sabendo o titani, os damdari comunicam-se com eficiência com boa parte das conjurações. Eles nunca admitirão isso, mas comunicarão-se com mais eficiência ainda com a conjuração à qual correspondem suas orelhas. A ligação dos damdari com Natal os faz geomantes maravilhosos; por outro lado, eles sentem-se péssimos fora do mundo, deprimidos e sem vontade de fazer coisa alguma. São, também, ótimos espadachins, e têm grande acuidade de reflexos, bem como um olfato privilegiado.

Por outro lado, suas aparências enganam muito no que diz respeito à maneira como pensam. A maioria é bastante sisuda e séria, e anda de péssimo humor. Eles odeiam música huma e não perdem uma oportunidade de ofender qualquer coisa feita por eles. Não são capazes de dizer frases curtas em alvalli (reflexo de sua intimidade com o titani) e poucas vezes ficam dispostos a colocar sua habilidade em comunicar-se com conjurações em prática. Gostam de viajar sozinhos. É difícil, inclusive, que um damdaran se dê bem com seu próprio bando e família. A maioria parte para procurar seu sustento e vida como caixeiros-viajantes ou mensageiros, sua ocupação desde milênios atrás. São ótimos cavalgadores de celados, bem como todas as coisas que aguentam seu peso. Eu já vi um damdaran montar um felpus e, pouco depois, um azdar.

As fêmeas são mais raras e um pouco diferentes dos machos. São curiosas e têm a mente mais aberta; gostam de trabalhar com comércio junto aos humas, particularmente de integrar linhas de produção simples como padarias e confecções. São boas com artesanato e trabalhos manuais; vivem de maneira plácida e pacífica. Quando atingem uma certa idade, muitas têm que abandonar seus afazeres para procurarem um 'namorido', um parceiro com quem possam gerar um único filho. A gravidez da damdaran dura de quatro a cinco meses, durante os quais o macho têm que lhe fazer mordomias (de péssimo humor). A ocasião do parto é misteriosa, e não se conhece a Alma Mater dos damdari; a criança é, daí em diante, criada pelo pai, que lhe ensina tudo que ela tem de saber antes de soltá-la no mundo. É raro que o casal fique junto depois disso. As fêmeas costumam ter o impulso de se reproduzir umas quatro vezes durante a vida.

Os damdari não batizam seus filhos. Eles são chamados de 'coisa' ou 'isso' até terem idade suficiente para escolher um nome para si próprio, geralmente muito longo, e em titani. Eles odeiam fama e reconhecimento, e trocam prontamente de nome quando dão na telha ou tornam-se conhecidos. O pior de tudo é que eles tendem a esquecer seus nomes antigos de verdade, e deixar de responder por eles.

A civilização damdaran é temente a Maeve de uma maneira silenciosa e estranha. Eles não oram e dificilmente se tornarão adeptos de qualquer altíssimo. Se você me perguntasse e eu respondesse com sinceridade, eu diria que eles sabem de alguma coisa que ninguém mais sabe, e não falam de jeito nenhum. Não gostam de falar sobre fé e crença e ficam subitamente sérios quando trata-se deste assunto.

À medida que envelhecem, os damdari vão piorando de humor e tendem a ficar cada vez mais reclusos. Seus cabelos escurecem ao invés de clarear, e eles vão andando cada vez mais curvados, como pequenos anciões. Diz-se que Maeve os leva de volta para casa antes que morram, e eles rejuvenescem para viver mais uma vez em seus mundos natais.

A maioria dos damdari sabe se defender, e bem, com geomancias. Quase todos carregam cetros de madeira com os quais invocam poderes naturais; são péssimos com armas de distância. Em Cédara, chamam de filho-de-damdaran as pessoas que pecam na pontaria. Gostam de brigar de perto, se precisarem brigar; não são particularmente fortes, mas sabem bater onde machuca e esquivam infernalmente bem. Alguns herdaram de suas castas a disciplina do Galho Djin, aprendida nos tempos da guerra. Os que o fazem lutam com galhos verdadeiros, nunca com espadas galhiformes, a não ser que seu galho tenha se perdido ou extraviado. São muito desajeitados com armas maiores que cetros e espadas; odeiam carregar peso.

Damdari viajantes muitas vezes são seguidos por um pequeno séquito de celados, que carregam suas tralhas. É raro que um damdaran se desfaça de algo se puder guardá-lo, mas por nada neste mundo o damdaran carregará coisas pesadas nas costas. Eles gostam de fazer comércio e de estar sempre na estrada; muitas vezes, gastam boa parte de seu dinheiro com mordomias nas cidades. São fracos para bebida; o álcool os deixa sonolentos e bobos. Preferem manter suas palavras, mas consideram um 'retiro o que disse' suficiente para quebrar os juramentos mais sérios.

Outra característica interessante da personalidade damdaran é a tradição do Quite. O Quite rege a vida de muitos damdari que vivem entre os humas. Eles odeiam ser ajudados, mas, uma vez que precisem e forem, farão de tudo para pagar o favor. Da mesma maneira, se ajudarem alguém, eles não desgrudam da pessoa até que ela lhe retribua. Por isso, o damdaran que quer sua independência faz de tudo para não receber ajuda. Amizades verdadeiras entre humas e damdari surgiram de contas sem-fim de favores pagos e favores a pagar. É lógico para eles que seja assim, e eles não conseguem viver de outra maneira. O Quite também funciona para o inverso, e eles são vingativos com aqueles que os prejudicam pessoalmente. É possível que eles fossem muito mais desligados dos humas se não tivessem esta mentalidade: normalmente, o damdaran só se importa consigo mesmo.

Uma pergunta que eu nunca quis responder foi acerca da existência de meio-damdari. Mas vou: nunca vi. Eu nunca vi gente menos romântica que os damdari, a maior parte dos machos têm aversão à intimidades físicas, ainda mais com mulheres humas; da mesma maneira, as fêmeas damdari, apesar de, talvez, ligeiramente mais dispostas a experimentar coisas novas, devem parecer meio magrelas e pouco interessantes para os homens humas. Os cedarianos é que vivem querendo estudar esta possibilidade, mas duvido muito que um huma, ainda mais um frouxo de um cedariano, consiga levar uma damdaran no papo para isso. Talvez um odeniano conseguisse, um farisiense fortinho quiçá, mas um cedariano, definitivamente, não.

Dizem que, próximos de lugares onde houveram grandes guerras djin no passado (principalmente em Longinus e em Cédara), existem santuários Damdara, refúgios escondidos no meio de áreas selvagens onde os damdari poderiam parar para descansar em meio a grandes jornadas. Estes refúgios, segundo ilustrações de velhos livros, eram construídos sob a terra com azulejos, boas lareiras e várias pequenas mordomias; suas entradas eram submetidas a encantamentos que permitiam apenas aos próprios damdari os encontrarem. De fato, um destes foi encontrado próximo à Velha Alagos, mas não se sabe se é o único. Eu visitei o lugar, e ele parece datar de muito tempo, mas muito tempo mesmo. Parece que o gosto dos damdari por mordomias data de muito antes de seu convívio com os humas.

Hoje em dia, estimo que existam, talvez, uns quinhentos damdari sobre Natal, mas seus hábitos peregrinos e irresponsáveis não nos permitem fazer uma estimativa perfeita. Ao menos trezentos deles fizeram comércio conosco no último século, mas, novamente, esta estimativa pode estar errada dado o gosto deles por trocar de nome.

Artigo: Navidorsos

O navidorso, 'Navis nereus', é um grande mamífero aquático, de vida extraordinariamente longa e uma couraça óssea poderosa recobrindo toda a parte superior de seu corpo. Em sua fase adulta, o navidorso pode atingir o tamanho de um barco pequeno. Eles habitam as profundezas do Oceano Alvo e as proximidades do Oceano Boreal e são quase invulneráveis em vida, não tendo nenhum predador natural. Em contrapartida, sua reprodução é lenta e difícil, e eles já beiraram a extinção várias vezes sem que houvesse sequer interferência huma.

A maior parte dos navidorsos não se importa se alguém agarrar em suas reentrâncias ósseas para viajar junto com ele, desde que esta pessoa tenha uma maneira de respirar embaixo d'água e aguentar a pressão do fundo do Boreal. Se o navidorso percebe que algum dos passageiros está se saindo mal, ele o leva (meio irritado) à superfície e tenta o fazer se soltar ali. Contam-se histórias de navidorsos que salvaram crianças nadando na superfície, mas provavelmente tratam-se de lendas. Parece-me que todos eles entendem titani.

Há quem veja lucro em caçar navidorsos. A única maneira de fazê-lo é rebocar a grande besta para um lugar seco. A carapaça óssea faz elmos e armaduras magníficas e relativamente leves, de aspecto extremamente maligno. A maioria das pessoas considera cruel ceifar a vida de um ser de vida tão longa e daquele tamanho; de fato, a visão de um navidorso morrendo arrastado para uma praia é difícil de suportar. Não há relatos desta atividade desde o quarto século da Fundação, quando várias couraças de navidorso foram postas em circulação.

O ciclo de vida de todos os navidorsos de Natal termina nas proximidades da ilha Blue Eye, ao norte de Faris, sob a estrela de Eochaid, regente sobre a eletricidade. Algo na água, uma estática elétrica segundo escolásticos, os faz procurar aquele lugar para morrer. As ossadas e couraças de centenas de navidorsos mortos formaram um labirinto amplo e macabro no fundo do Boreal. Não existe, até hoje, um templo de Eochaid - conta-se que, para invocá-lo à submissão, é necessário que recupere-se um fragmento precioso de si próprio que foi parar no fundo do oceano, o Coração de Eochaid. Justamente sob o labirinto de ossadas, infelizmente.

Claro que é assim. Imagina, se o Coração de Eochaid estivesse simplesmente no fundo do oceano, alguém já teria o encontrado, e já haveria um templo radiante em Blue Eye. Absurdo.

Artigo: Felpi

O felpus, Felpus granam, é um canino odeniano, de pelagem longa e branca. Assemelha-se muito ao 'lobo' descrito por viajantes vindos de outros mundos. A maioria vive nas tundras congeladas de Bialt em estado selvagem e tem olhos de cor verde profundo, onde ora se vêem pigmentos dourados e vermelhos. São surpreendentemente inteligentes: diz-se que eles se comunicam em titani, mas eles entendem quase todas as palavras de alvalli. Muitos trabalham para os odenianos, correndo enquanto puxam trenós em troca de caça, alimento e peças de armadura especiais. Organizam-se muitas vezes em caravanas para levar mensagens e mercadorias de uma cidade a outra durante as piores nevascas, quando as pessoas não podem viajar.

Os felpi são perigosos quando estão com fome ou ameaçados, e, excitados, não gostam de tentar dialogar. Como um todo, eles acham os humas preguiçosos e cruéis. Um conclave deles resultou na Grande Revolta do sexto século, quando as tundras odenianas começaram a ser desmatadas para a aquisição de madeira. Eles têm uma longa história de ódio e alianças com os humanos: já houveram muitas alianças, e muitas guerras de escala pequena. Felizmente, parece que quanto mais aprendemos sobre os felpi, e mais eles aprendem sobre nós, mais percebemos o quanto somos parecidos apesar de eles não conseguirem exprimir palavras, salvo entre eles próprios.

Felpi atacam agadanhando e mordendo, dando botes e conjurando geomancias de efeito distante. São perfeitamente adaptados à sua natureza e muito velozes: caçam pequenos animais e nínives que vivem nas tundras. A falta de manipuladores precisos como mãos não parece os afetar. Muitas vezes erguem barricadas quando têm de se defender, além de serem escavadores proficientes e terem pequenas noções de alquimia. Amam objetos de metal, principalmente artesanato chanteliano.

Uma segunda espécie, de felpi vermelhos, Felpus rudensis, têm pelagem alaranjada e mais curta. São menores e mais ágeis que os felpi odenianos, e vivem em ilhas de clima mais quente que separam Odenheim da costa nordeste de Faris. Séculos de separação do continente os fizeram plenamente adaptados ao ambiente mais abafado e sem neve. Como 'chacais' descritos por viajantes, são agressivos e estritamente carnívoros, alimentando-se de pássaros e atacando garudas em bandos.

Existe ainda uma terceira espécie de felpi maiores, os arquifelpi, Felpus rex. Eles parecem ter surgido a partir de genes recessivos entre os felpi odenianos comuns. Têm pelagem de cinza para prateada. Sua respiração cria uma espécie de aura bruxuleante e branca, e eles podem soprar relâmpagos geomânticos. Vivem entre os felpi odenianos como representantes e líderes; são mais violentos e menos ponderados que os felpi normais, mas também parecem ser mais inteligentes, principalmente no quesito táticas de batalha.

Artigo: Garudas

Diz-se que o garuda foi a primeira conjuração de Maeve, e a mais poderosa delas. Ambas as afirmações são falsas, mas arrisco afirmar que os garudas foram os grandes responsáveis pela queda dos djins como uma civilização. Além de ser quase invulnerável à feitiçaria, ele consegue canalizar geomancias poderosas através das plumas. É também quase irracional de tão estúpido, movido por instinto e algum desígnio superior.

Guias antigos de bestiário colocam que só existe uma espécie de garuda. Novamente, eu discordo - são todos realmente muito parecidos, mas cada região trouxe peculiaridades milenares para suas espécies.

Para quem não sabe e não ouviu as histórias, o garuda é uma grande ave atroz e de plumas azul-elétricas. Suas asas de grande envergadura podem chegar a dez metros de ponta a ponta; suas patas poderosas parecem ser recobertas de metal e em seus olhos fulgura geomancia e ódio. Cada garuda tem um desenho sutil próprio nas asas composto por plumas arroxeadas; quanto mais velho o garuda, mais suas plumas se tornam roxas e mais forte fica sua geomancia. Seu bico é relativamente curto para seu tamanho, mas tem uma perfuração mortal. Sua alimentação inclui ovos, grandes animais, alguns tipos de árvore (eles consomem a madeira), e, em certas épocas, ervas que crescem em rochas secas, mas, sobretudo, o maldito animal gosta de se divertir para alimentar-se. Aí começa o grande problema.

A primeira espécie que irei abordar será o dito 'garuda único', o 'Ruden primus', que é o mesmo nas estepes belvederianas e nas grandes savanas de Ivoire. Este é o famoso derrubador de trens das histórias de criança. Os garudas atiram-se contra qualquer coisa que lhes pareça um desafio, e um trem resfolegante parece exercer um fascínio e uma atração incontrolável para todos eles, que investem mergulhando e atingem, com precisão admirável, a quina superior do trem com as patas metálicas. Em todas as vezes que isso foi registrado, o garuda conseguiu derrubar o trem. Então ele começa um cruel jogo: ele mata quem consegue escapar do trem, e atinge-o seguidamente com chutes e golpes para contundir as pessoas lá dentro.

O poder geomântico principal do garuda, e o que parece ser possuído por todos eles, é a capacidade de provocar uma explosão metamágica arroxeada à distância que causa estragos proporcionais ao estado e tamanho físico do alvo. Pessoas feridas ou frágeis não parecem sofrer tanto do golpe, mas ele é cruel com os fortes e os saudáveis, enviando-os através de uma viagem rápida e dolorosa de dor enquanto trechos de sua vitalidade são arrancados. Quanto mais velho o garuda, mais dolorosa é sua explosão metamágica.

Outro poder incrível do Ruden primus é a capacidade de enrijecer e atirar uma única pluma que leva um foco geomântico absurdo. Quanto cai ao solo, a pluma explode seguidamente uma média de quarenta vezes com incrível velocidade: os estouros duram aproximadamente quatro segundos e erradicam qualquer coisa pega na área. Nem todos os garudas possuem esta capacidade, contudo; normalmente só os mais velhos e místicos podem fazê-lo.

Uma segunda espécie de garuda habita as montanhas do norte cedariano e algumas ilhas para o lado de Odenheim, principalmente as nevadas. Este garuda envelhece com algumas plumas esverdeadas em adição às suas roxas. Ele é relativamente menor e mais fraco que o garuda de regiões mais quentes, mas seu poder místico é proporcionalmente maior. Sua classificação é 'Ruden maevitus', sendo ele o maior canalizador de geomancia conhecido entre as conjurações.

O garuda geomante pode carregar suas asas com seu poder geomântico e imbuir o efeito em seus golpes físicos; muitos deles, mesmo os que não envelheceram, podem invocar a pluma destruidora, e em adição a estes poderes, a maioria consegue, através de uma concentração longa, invocar um único relâmpago poderoso. A maioria faz isso para alcançar um alvo distante; derrubadores destas áreas avisam que afastar-se do garuda geomante é mais perigoso do que manter-se perto dele, já que o garuda tende a se distrair com qualquer coisa e pode deixar a guarda aberta a ataques de proximidade vez ou outra.

Artigo: Sobre os Ditos 'Santos da Trangressão'

Uma entre, sabe-se lá, cem pessoas consegue conservar algum controle físico sob o efeito do lieser. Essa pessoa consegue uma percepção sobrenatural e desenvolve explosões de força geomântica incríveis. A Transgressão já conheceu três destes indivíduos, todos mortos durante suas Noites de Lanterna derradeiras; diz-se que este talento, de transformar lieser em poder bruto, sempre está nas pessoas mais insuspeitas e distantes, mas que têm um desejo interno forte de ir contra tudo que está sólido, de quebrar-se para arrebentar tudo.

Chamam-os de Santos. Em êxtase, são os líderes incontestáveis das passeatas transgressionistas; sua lenda alcançou os poetas e os fez como musas para inspirá-los. Seus seres cambaleantes e fulgurantes em poder surgiram logo em palavras e quadros ao redor do mundo.

Artigo: Sobre o 'Lieser'

O lieser é um elixir aquoso que vaporiza-se em contato com a atmosfera, composto principalmente de água alquímica. A água alquímica tem várias utilizações: tóxica e levíssima, ela contraria a gravidade mantendo um estado quase líquido enquanto flutua gasosamente. Respirada, ela induz a uma letargia fortíssima; combinada com uma porção mínima e perigosa de éter alquímico contido (entro nesse assunto depois) e compostos químicos de perfumes, ela induz alucinações fortes, em viagens de panorama mental aterrorizantes. O lieser se tornou famoso entre as fileiras da Trasngressão depois que um químico fracassado cedariano perdeu a vida sintetizando a segunda versão de sua 'fórmula dos sonhos', que o enviaria por uma viagem sem fim dentro de sua própria mente.

Artigo: O Estilo Destrucionista

Eu mal considero uma coisa destas como arte, mas devo retirar meus conceitos dos meus escritos o máximo possível. O estilo pregado pelos poetas da revolução, montados na armurada da eternidade e prontos para atirar-se com fúria ao fim, é a arte na destruição. Latas de tinta, pixações, marretas e qualquer coisa que destrua e humilhe as glórias antigas são os santos salvadores dos destrucionistas. Este estilo vibra entre as camadas jovens de classe alta em Lodis, que muitas vezes arriscam o que não têm unindo-se a movimentos de destruição como a Noite da Lanterna (que é quase que uma celebração máxima destrucionista, apesar de seu propósito inicial não ter nada a ver com arte).

A obra destrucionista que não é feita propriamente destruindo algo encontra-se na poesia e na música. Esta última tem teor chanteliano, mas sempre converge pra grandes blocos de dissonância e envolvem virtuosismos demoníacos em escalas descendentes. No outro lado do compasso estão escultores que trabalham com detritos, pichadores de poesias, alquimistas cujas explosões libertam trovões maléficos e protestantes cujo prazer máximo é desafiar tudo que foi imposto para todos por séculos.

Leitura: A Transgressão e a Noite da Lanterna

O grito da Transgressão se tornou sinônimo de caos e perigo nas noites lodianas. Seus libertadores são ex-cavaleiros que desprezam a autoridade dos Elmos Escarlates e buscam libertação do mundo material, envolvidos com elixires alucinógenos e uma sinistra cultura das ruas. Eles têm laços próximos com os cavaleiros bandidos, órfãos da Ordem Pristina e das partes idealistas da Ordem de Astoreth, mas pode-se dizer que há pelo menos uma geração de idéias separando as duas facções. Enquanto os cavaleiros-bandidos estão perdidos há mais de 30 anos, só recentemente a Transgressão começou a ganhar espaço nas lendas negras dos cavaleiros que caem.

Quando um militar, cavaleiro ou soldado, torna-se desobediente ou revoltoso, ele é abandonado por Odenheim. Por "abandonado" entende-se que toda a vida, a família, os contatos e os recursos do militar são removidos e ele é forçado a deixar o país. Oficialmente, nenhuma parte do processo envolve violência, mas quando outros militares têm contas a acertar com o rebelde, é concedida uma espécie de 'carta branca' especial - muitos desses atos resultam na humilhação e na morte do exilado.

Os ex-militares que resistem ao exílio e voltam aos portões lodianos habitam os distritos fantasma construídos por Else. Estes formam o corpo de combate da Transgressão.

Quase semanalmente, a Transgressão, por meio de lideranças esparsas, se reúne na "Noite da Lanterna", em que unem suas armas em procissões destrutivas para aterrorizar a população. Eles preferencialmente vitimam bairros nobres, atirando para os ares, derrubando postes, quebrando coisas e não tendo piedade de pessoas que por acaso estejam na rua. Os poucos conflitos que já houveram entre a Transgressão e brigadas designadas para enfrentá-la foram sangrentos e não levaram a nada. O número de rebeldes só cresce com o tempo. Além do mais, a Quimera descobriu que muitos cavaleiros que ainda são leais têm amizades entre a Transgressão e penderiam para o lado inimigo com facilidade se houvesse tanta preocupação assim. Nas últimas seis luas, afora algumas perseguições quase encenadas, a Noite da Lanterna é quase uma festa livre para os rebeldes se sentirem à vontade em destruir Lodis.

O evento foi batizado por um cronista de um jornal pequeno da cidade, o 'Corrente'. O termo ganhou popularidade entre os universitários lodianos (muitos dos quais participaram da Noite da Lanterna - a primeira delas juntou muita gente que não tinha nada a ver com os militares, uma passeata de destruição só pela revolta, sem alvo, somente ondas de ódio se espalhando para lugar nenhum) e chegou rapidamente à própria Transgressão, que passou a chamar suas guerras dessa maneira.

Leitura: A Que o Fim se Assemelha

A maioria das pessoas prefere luz quando está para transpor o universo físico. Janelas abertas, lâmpadas acesas, lanternas, velas, luz. O instante em que a pessoa abandona seu corpo é certamente de glória, apesar de não mais estar disponível fisicamente para as pessoas amadas. Existem preces ditas desde Biblos até Veruna, preces e cantos universais que pedem a Maeve um futuro brilhante para a alma e um consolo para a tristeza do abandono dela. A que o fim se assemelha para quem está morrendo, ninguém pode dizer, mas todos poderão, um dia. Os rituais de morte são presididos por um adepto: todos os altíssimos têm suas liturgias para o encaminhamento dos mortos. Está nos tomos que uma pessoa que morra sem um ritual em sua honra pode ter sua alma extraviada no caminho para o encontro com Maeve, e permanecer por séculos procurando-a sem a encontrar, não tendo a guia firme de um altíssimo.

Estudos e revelações de sacerdotes eminentes revelam que as almas abandonam Natal como aves que migram para outra existência, se juntando a grandes fluxos eternos, caminhos cravados na eternidade. Sobre os Desencantados, ou Crianças da Noite, pouco se sabe, a não ser o fato que seus espíritos não sobrevivem, sem bênçãos e sem futuro. Acredita-se que no nascimento, o condão de um altíssimo faz uma blindagem para a alma para sempre, e uma alma sem esta divina proteção encerra-se quando perde sua única e última casa, o corpo.

Eu procuro um porto...

Agora ando solitário, tendo o pensamento de Viola por companhia, mas um infinito em ressaca marítima. Estas estradas não têm fim e parecem ter sido feitas por gente que viaja pelo prazer de viajar, são voltas e mais voltas em torno dessas árvores gigantescas. Começa a nevar e eu não encontro uma única estalagem onde possa repousar meus ossos. Estou sem provisões, sem montaria, sem barracas, sem direção e sem perspectiva. Caberá a mim cair desfalecido no meio da estrada?

Artigo: Vindo ao Mundo

Um dos segredos mais universais e bem-guardados do mundo é referente às condições que as crianças nascem. Só suas próprias mães e seletos adeptos sabem o procedimento exato. Eu obviamente sei como a mulher huma dá a luz, mas o mistério está no seguinte. Quando a criança está para nascer (a mãe sente isso), os pais viajam para um templo e os adeptos recebem a mulher e a levam para uma área interna onde o trabalho é feito. O pai não pode assistir o parto, nem ninguém mais. Cabe a ele ficar do lado de fora do templo, esperando (em Cédara, tradicionalmente, bebendo vinho). Muitos templos têm berçários para tratar dos nenéns que precisem de alguma coisa mais após nascerem. Existe alguma bênção especial concedida à criança, cujas palavras eu também desconheço. É incrível que um segredo executado tantas vezes há tanto tempo ainda não seja de conhecimento de todos. Acredito que haja algum efeito milagroso sobre a mãe que a impede de lembrar e falar do que aconteceu.

Nem os próprios adeptos, internos do templo, sabem exatamente o que se passa. Muitas vezes sobra para eles cuidar de uma criança ou outra, mas universalmente, o processo de nascimento é secretíssimo, ponto.

Pois são doces mistérios da vida.

Artigo: A Permissão para Amar

Muitos adeptos são celibatários por escolha, negando o amor para não deixarem-se ocupar de sentimentos terrenos, mas nos dogmas da maioria dos altíssimos, não existe qualquer afirmação contra o romance. Entretanto, a segunda máxima deífica de Maeve, onde lê-se "Leva os teus para as terras do sol, e volta", pede a separação do adepto daqueles que ama. Faz sentido. Eu acredito que o amor desvia o homem. E se o homem acredita ter um propósito (como todos os adeptos de fé devem acreditar), ele não deve deixar-se guiar pelo amor. Enquanto pode ser uma motivação para voltar para casa vivo, para manter-se, para lutar, é uma vida onde deve-se dedicar a uma coisa a mais.

Por outro lado, a maioria dos adeptos estudiosos que mergulham fundo nos mistérios de um altíssimo costumam-se casar, normalmente com outros membros do clero. O casamento entre dois adeptos apaixonados perante Maeve é uma cerimônia que normalmente é aberta apenas para o sacerdócio.

Vale falar do casamento neste momento. Não era o assunto inicial, mas que valha. Os costumes quanto a isso variam de lugar para lugar, então comecemos com minha pátria. Odenheim.

Em Odenheim o homem faz um cortejo público à mulher quando ele quer desposá-la. Como a maioria dos namoros é feita discretamente, os casais combinam a melhor maneira do homem revelar às pessoas sua disposição em casar com a mulher; muitas vezes, a moça escreve cada palavra do homem. Os bons cortejos viram histórias para muitos anos, e o povo odeniano percebe rápido quando é natural e quando é fingido. Depois do cortejo, assim que espalham-se os rumores sobre o novo casal, este marca a data do casamento e a anuncia. A maioria dos casais viajam para Veruna, Lodis, Vercel ou Gradec para a cerimônia, que sempre envolve uma longa caminhada sob flores atiradas pelos convidados. Em Rublo é bem parecido.

Em Cédara as porcarias dos casais são escolhidos pelos pais das pessoas. Muitas vezes os pais das meninas são muito atenciosos quanto às seus gostos e escolhem favorecendo suas filhas (se o rapaz tiver mínimas condições). Por outro lado, os divórcios são a coisa mais corriqueira do mundo em Cédara. Existe uma quantidade descomunal de pais e mães solteiras na República. As mulheres cedarianas tradicionalmente valorizam posses e realizações. Homens bem-sucedidos e honrados são tidos como ótimos partidos. A última tendência da burguesia cedariana é que as meninas escolham seus namorados independente da posição social desse, o que não é considerado muito virtuoso. A sociedade acredita que as meninas que escolhem esposos sem bons negócios e sem bons antecedentes não se preocupam com sua família, seus pais e seu futuro.

Faris tem uma tradição muito romântica para os casamentos. Nas festas de quinze anos das meninas (que geralmente são grandes celebrações), os rapazes lhes oferecem presentes e prendas. A garota, então, escolhe um deles para levar, em peregrinação noturna em honra à Deusa e aos Altíssimos, uma guirlanda a uma pequena capelinha construída fora dos limites da cidade. É esperado que o casal então namore sem preocupações e venha a casar quando a menina ficar grávida, algumas décadas mais tarde. Acredita-se que divórcios prenunciam tristeza eterna e que as pessoas devem acreditar na escolha da guirlanda.

Em Longinus não se casa! Os citadinos arrumam-se com suas próprias tradições locais, mas a maioria das pessoas está acostumada a atrações intempestivas, casos passageiros e, de resto, a uma vida solitária. A única desculpa para que uma pessoa aceite que teve um romance é admitir para si mesma que o desejo carnal sobrepujou a mente. Quase todas as mães criam seus filhos sozinhas. Pessoas que preferem viver juntas devem abandonar as cidades e estabelecerem-se em algum outro lugar, para não ofender o decoro. É possível que os adeptos tenham que fazer alguma coisa a respeito, porque lentamente a população de Longinus vem caindo.

No país dos pardos, Ivoire, a maioria dos casamentos é feito dentro das próprias famílias, normalmente com primos distantes, de segundo ou terceiro grau. Geração após geração, ancestrais não se misturam e as famílias cujos membros tinham um tipo de feição há duzentos anos ainda conservam os mesmos traços hoje em dia. A beleza física é muito prezada para casar; a maioria das famílias vive junta em grandes casas que vivem sendo ampliadas.

O amor... desvia o homem. Tenho que pensar mais nisso.

Transcrição do Tomo das Eras, LVIII

Virá em conclusão o crepúsculo
Da entrada do poder maldito
E junto com o fim da armurada
Acertarão os oceanos contra tudo
Contra tudo, contra tudo
Pois serão
Sete oceanos de luz
E sete raios de poder
Antes que venha a nós todos
Alatus.

Leitura: Uma História de Pluma Isabelle

Essa é a primeira parte de três capítulos escritos por um auramante que contam de aventuras de Pluma Isabelle antes que ela voltasse à Lodis. Se eu puder encontrar os outros capítulos, transcreverei-os para cá.

"Nossa improvável reunião fora feita com precisão histórica naquela noite de Belvedere. Muitos anos antes de que qualquer coisa terrível tivesse acontecido, as idéias eram mais difusas e impressionistas, e até os poetas mais trágicos não nos convenciam tanto. Espiritualmente aceitávamos toda felicidade de maneira natural, fluída. Pluma, de gatinhas, tentava entender algo estranho num papel, e Hani Leão-Vermelho repetia a passagem com vários sotaques, rindo de si próprio. Todos levemente tristonhos porque as duas garrafas de vinho que se permitiam toda noite tinham se acabado prematuramente.

Amaterasu, a dragoa, me parecia uma estátua de bronze. O nome guerreiro fazia lhe faltar mais uns dois braços, mas a velocidade dos outros a servia bem. Naquele tempo, era jovem, violenta e seus reflexos ainda não tinham manchas de dor. Eu me lembro do brilho nos seus cabelos e no seu olhar, e me lembro da sua voz potente nos guiando sempre em frente. Quantas vezes não me carregaram aqueles braços que não vestiam braceletes ou adornos de mulher, e quantas vezes não me surpreendi perdido no seu vigor sempre pronto e contundente.

E Kainen, ninguém costumava perdoar sua sorte, pois as estrelas pareciam ter lhe tecido um manto indestrutível. Os tiros e flechas pareciam resvalar na sua pele, e também naquela cota de malha tão velha que ele usava. Já lhe vimos ferido algumas vezes, e de coisas tão singelas quanto espinhos de rosas. Mas em batalha era um leão, muito mais do que Hani que carregava a fera no nome. Lemminkainen o Imortal, era como costumávamos chamá-lo, e ele fingia estar aborrecido quando regojizava-se com os elogios, por dentro e tão secreto quanto um balde de tinta.

Pluma lutava tão mal naquela época que chegamos a pensar, mais de uma vez e por sua própria segurança, que devíamos lhe assegurar uma posição na retaguarda com uma escopeta ou umas flechas, mas a teimosia da garota sempre nos vencia. Hoje imagino que ela consiga derrubar vinte serretes a caneladas, mas naquela época era menina demais. Devia ter não mais do que dezessete anos, mas ela sempre nos mentia a idade.

“Vinte e dois! E eu já tinha dito isso pra vocês” – emburrou, recuando defensivamente. Levantou, deu duas voltas em torno da roda, e sentou de pernas cruzadas no chão.

“Com o teu perdão, Pluma, você disse vinte e um no mês passado, e se não acredita, olha aqui, eu anotei no meu diário” – disse uma vez Lucas, o auramante, a deixando corada.

Pluma xingou um ou dois palavrões e abraçou os joelhos. “Eu não tenho culpa, eu fui raptada, não me lembro o dia do meu aniversário, mas aquele senhor tinha dito que eu parecia que tinha vinte, e... e eu acreditei nele, então eu tenho vinte e dois anos. E posso andar com vocês, e se vocês me acham ruim, depois tinham que ver o Hani atirando com a besta”.

Hani fez cara de mau. “E você com essa história de rapto denovo.”

“É verdade...”

“Toda vez que você conta, muda os detalhes”, disse Lemminkainen, bocejando e deitando no colo de Pluma. “E ninguém aqui engole essa de você ser a nobilíssima herdeira da coroa de Odenheim. Não tem ninguém te procurando, você é ralé que nem eu. Além do mais, os únicos aristocratas aqui são o Luc e o Hani, e o Hani parece mais um babãozinho!”, grasnou rindo.

“Conta essa história denovo”, disse Luc. “Exagera nos detalhes acrobáticos que nem da última vez, pro Hani desemburrar. Só não inclui aquele golpe fenomenal de espada que você deu aos cinco anos de idade”.

“Mas eu juro que eu acertei aquele homem com a espada! Por todos os altíssimos! Era uma noite como outra...”, fez-se reticente e deu um arzinho de mistério. Sorriu. “... eu me lembro de me olhar no espelho o tempo todo. Tinha um cabelão vermelho que eu não deixava ninguém mexer, e usava as roupas mais bonitas. Odiava quando aquelas criadinhas vinham me pentear, eu batia nelas com a bengala de meu pai.”

“Muito convincente,”, disse Lucas. “mas vá para a parte do seqüestro.” "

Transcrição do Tomo das Eras, LII


E não falhará o árbitro
Em entregar seu julgamento
Pois nada neste mundo, nada, nada
Escapará ao grande Desígnio.


Leitura: O Impasse de Margrave

Em tempos recentes, um evento realmente assustador abalou a crença do clericato longiniano, e, de certa forma, do mundo inteiro. A sexta máxima deífica da fé de Maeve instiga os adeptos a não permitirem que vivam e prosperem os djins e seus descendentes. O que atravessou suas mentes quando um meio-djin, Shadrach de Chi, sob disfarce conseguiu uma Infusão do Fogo, tornando-se um adepto e desenvolvendo, em pouco tempo, pleno domínio sobre uma grande quantidade de milagres restaurativos.

A maioria dos adeptos que não viram o meio-djin cantando milagres acreditam tratar-se de uma farsa, mas até mesmo Ludgast reconheceu a veracidade do adepto e declarou que sua vida estava guardada pelo Império dali em diante. O resultado disso é que em nenhum lugar do mundo os meio-djins são considerados 'pessoas', salvo em Longinus. A lei foi escrita pelo punho do próprio Ludgast esperando que todos os outros países seguissem seus exemplo.

Shadrach está vivo até hoje, residente em Chi, em um alto cargo em meio aos cardeais da cidade. É respeitado e temido entre os adeptos mas seu semblante, assim como seus atos, são pacíficos.

Artigo: As Seis Máximas

O propósito de vida dos adeptos se resume nos mandamentos contidos nos vários livros deixados por Sharini. Existem seis máximas que resumem os mandamentos e o modo de vida que os adeptos (e todos os líderes de boa-fé) devem seguir. Estas máximas são universalmente reconhecidas em Natal, e estão sendo lentamente levadas a Calibur e ao Gâm Flutuante pelos colonizadores. Todas elas têm vários sentidos e são muito metafóricas; pessoas de lugares diferentes interpretam as mesmas palavras de maneiras radicalmente diferentes.

A primeira máxima: “Proteja o coração dos teus, e o teu coração.”
O “coração” é tomado por muitos como a alma e a bondade, e por outros como integridade física. O fato de Sharini ter dito para protejer o coração “dos teus” antes do próprio gera debates. Existe uma corrente filosófica ivoreana que acredita que a bondade dos outros deve ser protegida à custa da própria bondade, que deve-se pagar qualquer preço pela pureza do povo, mas não se deve ter medo de sacrificar a própria. Talvez isso justifique alguns atos macabros de guerra que alguns ministros ivoreanos têm tomado.

A segunda máxima: “Leva os teus para as terras do sol, e volta.”
O sentido universal desta máxima é que deve-se procurar os lugares abençoados, deixar lá as pessoas amadas, e voltar para aonde é precisa a ajuda. A parte dolorosa deste mandamento é “deixar” os amados: Sharini ordena uma separação, não a perpetuação do amor. Reptantes feiticeiros longinianos, em busca de alguma religião, abraçam este mandamento para guerrear pelas terras ancestrais de seus clãs. Líderes da guerra em Ivoire encontram paz nestas palavras, acreditando que estão seguindo desígnios divinos.

A terceira máxima: “Seja luz quando os oceanos lhe vierem escuros.”
Os adeptos acreditam que estas ordens dizem que, mesmo quando se está envolto em inimigos, não se deve ceder ou trair, nem juntar-se a eles; pelo contrário, brilhar ainda mais com a chama da paz e da bondade.

A quarta máxima: “Cante pelos caídos e ampare os que perderem o equilíbrio.”
Os “caídos” podem ser os mortos. Os adeptos nunca permitem que ninguém morra sem homenagens e ritos pela passagem e pelo fim da odisséia da vida. Acreditam que “sem equilíbrio” sejam os enfermos e os feridos, e não permitem que a jornada deles termine prematuramente. Há quem acredite que os caídos sejam os corrompidos, e que se deve orar por eles.

A quinta máxima: “Reconheça a si próprio nas águas calmas e inspire o ar.”
Esta frase foi traduzida de diversas maneiras ao longo dos séculos. Para os longinianos, deve-se tornar-se semelhante às águas calmas. Para muitos outros adeptos, deve-se reconhecer seu reflexo nas águas e conhecer a si mesmo, e regojizar-se com isso, buscando sempre maior poder pessoal e admirando a própria transformação.

A sexta máxima: “Não permita que prospere o fogo ou as garras.”
Todos entendem esta máxima precisamente da mesma maneira: os djins devem ser contidos e mortos, junto com o flagelo da conjuração. Em alguns países, mesmo meio-djins são vitimados por adeptos guerreiros, independente de sua disposição. Um grande golpe contra os adeptos aconteceu quando um meio-djin, sob disfarce, conseguiu submeter-se ao Ritual de Infusão e tornar-se, por pouco tempo, um adepto plenamente poderoso.

Leitura: Grande Lorde Aeolus, Plácido e Infalível, Líder Sobre Todos os Elmos Escarlates

Apesar de ter ingressado no meio militar odeniano sob Dálfon Palas, Aeolus Manlynx sempre teve em seu coração a lealdade à linhagem dos Meredith, herança de família. Durante séculos, os Meredith tiveram em suas primeiras fileiras os sires Manlynx, que eram conhecidos somente pelo primeiro nome dada sua quantidade. Sem senso de identidade ou amizade, o jovem Aeolus foi um dos primeiros a executar vários de seus amigos na inssureição de Soren Meredith contra o rei impuro, e ele carrega até hoje um corte longitudinal no peito feito pela espada decidida de Kachaturian quando este tomou o trono de volta para Ifalna Palas, filha de Dálfon.

Aeolus conheceu o então duque Dário Meredith enquanto este falava a muitos jovens na Universidade de Semíramis, buscando angariar aliados para derrubar a coroa de Ifalna. Ele não acreditava no jovem duque, mas rapidamente viu que ele herdou, além dos olhos, a vontade dominadora de seu pai. Foi mortalmente leal a ele até que ele, finalmente, desapareceu.

Dário o fez líder de seus esquadrões por dois motivos. O cavaleiro da armadura férrea nunca havia lhe falhado, primeiramente. Depois, porque ele tinha certeza que nada inesperado partiria do homem que nunca vacilou em cumprir ordens em sua vida. Dário tinha certeza que com uma ordem, Aeolus enterraria sua espada em seu próprio coração.

Hoje, com setenta e poucos anos, Aeolus espera a volta de seu mestre com serenidade. Ele cuidará para que nenhum impuro suba novamente no trono. Ele já viu seu país sofrer com isso mais de uma vez, em sua própria concepção, e sua espada está mais pronta do que nunca. A idade desgastou seus ossos mas parece ter feito eclodir nele uma força demoníaca oriunda da sabedoria da vitória. Quem um dia enfrentou Aeolus e por acaso sobreviveu viu-se morto antes que Aeolus desferisse o primeiro golpe.

Aeolus, o Elmo Escarlate, é uma parte ativa da Quimera. Ele acredita que Else cuidará bem de Odenheim enquanto souber seu lugar, e não permitirá que ela assuma liberdades enquanto viver. Sobretudo, ele tem uma fé firme no retorno do Imperador e seu único temor é morrer sem ter tido a possibilidade de concluir seus serviços à mando de Meredith.

A idade tornou seus cabelos castanhos platinados, assim como seus olhos. Quando não precisa cumprir funções cerimoniais, Aeolus anda fardado com os punhos cerrados. Em guerra, veste uma armadura pesadíssima de placas de ferro e usa sua própria espada de cerâmica, um presente de Soren há muito tempo. Ele fala pelos olhos e detém uma inteligência severa e pungente, que não envelheceu com o tempo.

Então representamos perigo.

"Então quer dizer que o povo farisiense que trabalha em vossos orquidários lhes representa perigo."

"Representam perigo enquanto possuírem movimento e mentes. Perigo enquanto vivos, perigo ao sistema e aos outros. O que faz aqui?"

"Quero autorização para abandonar Rublo."

Ele me examinou longamente. Seus olhos transcorreram através de minha alma. Quando dei por mim estava sob um milagre, ele segurava o grande chapéu contra o vento místico que me perpetrava.

"Ivaness Rel Barlaam, Investigador Real. Precisava vir tão longe?"

"Saga", eu disse. Maldição!

Ele assertiu com a cabeça, divertindo-se. "Você tem sua autorização. Saia imediatamente. Não queremos gente como você aqui. Sua ventura está acabada."

Leitura: Nossa Dama Hierofante Else Gwen de Estelle, a Elmo Dourado

O conselho se tornou soberano mais uma vez sob o mando da Hierofante Else. Consta oficialmente que o imperador é Meredith, e acredito eu que continuará constando até que descubram que ele está morto, o que dificilmente acontecerá. É uma lei que existe desde a fundação e que prenuncia uma era teocrática em Odenheim. Meredith não teve filhos e a família real, em todas as suas dissindências, estava morrendo. Nada restavam senão filhos de impuros e barões distantes com um nada do dito 'sangue de santo'. Os aristocratas não estavam dispostos a coroar um ilegítimo novamente e possivelmente manifestariam repulsa se isso viesse a acontecer.

A Hierofante reduziu o Conselho do Palácio Oceânico a três pessoas: ela mesma, Aeolus dos Cães de Ferro, e Hepzibah dos Rebentos de Rachamarfim: os dois são até hoje líderes das duas maiores ordens militares de cavalaria odeniana. O povo chamava o conselho de Quimera de Três Elmos, ou simplesmente a Quimera. Else era um Elmo Dourado, Aeolus era o Elmo Escarlate e Hepzibah era o Elmo Cerúleo - as cores combinavam com os brasões de suas ordens.

A sala original do Conselho foi tombada como uma espécie de museu particular de Else, e ninguém mais entra lá a não ser os encarregados da limpeza do lugar. Nem os habitantes do Palácio Oceânico sabem, hoje em dia, se há um lugar oficial para a reunião do Conselho. Dizem que os três discutem o destino de milhões de pessoas enquanto andam pelos vastos corredores do palácio. Aliás, nada equipara-se à quantidade de histórias que as pessoas têm a contar sobre Else.

Nossa Dama Hierofante Else Gwen de Estelle, a Elmo Dourado, adepta prodigiosa, formou-se Mestra Celestial aos 22 anos, em História Maior aos 25, e tornou-se hierofante mostrando um controle absoluto e estranho sobre o avantesma de Lodis, superior aos mais antigos e experientes membros do clericato. Hoje, com vinte e nove anos, toma lições com um mestre-de-armas longiniano e já é reconhecida em torneios marciais como tendo um manejo poderoso das armas dos kishi. Sua espada Vergessenheit, uma daikatana pétrea esculpida em relevo chanteliano, é pesada e rápida como uma foice, mas nunca foi usada, somente em demonstrações, e em sua onipresença guardada na bainha às costas da Hierofante.

As pessoas que tratam com ela conhecem sua face atormentada pela insônia e por uma enxaqueca que a assola. O que ela sente muitas vezes parece se espalhar pelo ar e causar arrancos lancinantes de dor de cabeça nas pessoas ao redor, como uma maldição perpétua e maligna. Quando ela consegue dormir, é extremamente calma e amável, mas após três dias de insucesso na cama ninguém a procura. A ajuda de uma pequena comitiva de adeptos e médicos ocupa boa parte de seu tempo.

Não se sabe sob quais circunstâncias Else se tornou tão estimada por Meredith a ponto de ela se tornar sua braço-direito. Aristocratas contam que Else esteve com Meredith todo o tempo em sua saga trágica tentando obter um herdeiro, o apoiando e consolando em seus insucessos frequentes. Más-línguas dizem que os dois foram amantes, mas isso dificilmente foi verdade dado o tipo físico de Else comparado ao de Pluma e Ifalna, as duas mulheres que supostamente o duque teria amado: enquanto Else é loira, alta e austera, Pluma e Ifalna, ambas, tinham cabelos vermelhos, estatura média para baixa, e portavam a beleza e fragilidade clássica da aristocracia odeniana.

Por outro lado, Else não manifestou surpresa (nem outra qualquer reação aparente) quando Meredith foi dado como desaparecido pela primeira vez. Talvez ela seja a única pessoa no mundo que conheça seu paradeiro e suas intenções verdadeiras com sua migração repentina. A verdade é que o Duque se tornou uma espécie de figura mitológica, um rei-fantasma vagante que vigia as crianças brincando e que ninguém sabe se é bom ou mau. Poderiam compilar-se um livro dos grossos se todas as histórias contadas sobre ele, das reais às absurdas, fossem reunidas.

A única pessoa da aristocracia que, até hoje, tem como missão pessoal encontrar Meredith é Lorde Fabian de Tércia, ex-líder dos Leões Brancos (hoje Rebentos de Rachamarfim). Ele move diariamente uma pequena comitiva de Investigadores Reais atrás de todas as histórias e pistas sobre o Rei-Fantasma.

Enquanto isso, Else conduz Odenheim na maior revolução industrial já vista no mundo, ampliando a capital Lodis a níveis absurdos, construindo habitações para fantasmas e levando as linhas férreas a elas, sem que haja sequer alguém para subir e descer salvo as pessoas encarregadas das construções. Quando ela ordenou a construção de Nova Eiselc o Primeiro Distrito Aéreo, os aristocratas acreditaram que ela estava completamente insana, por estar construindo sobre andaimes um bairro inteiro e por ter batizado-o Primeiro Distrito Aéreo, o que indica que haverão outros.

Não há gente para morar nesses lugares. Na verdade, há muita gente se empilhando de qualquer jeito nos distritos favelizados de Teale, mas obviamente não é a eles que Nova Eiselc se destina. Os intelectuais odenianos imaginam que a ampliação de Lodis tenha a ver com a exploração de Calibur por grandes navios e a recente missão cartográfica enviada pela Quimera contando com uma tripulação pequena, porém muito capaz, inclusive o bem-aventurado capitão Klaas e o marinheiro lendário Braden de Gratien y Lake, que, entre outras coisas, foi o primeiro a chegar na costa do Gâm Flutuante, mapeou, com uma comitiva, todo o lado norte de Velha Iorque e, foi o que mais penetrou no Cinturão de Fogo, recuando estritamente para voltar com informações que, talvez, ajudem os próximos planinautas a investir contra o Mundo Difícil (ou nunca mais voltar lá).

Supõe-se que uma grande população será trazida para trabalhar, ou fazer alguma outra coisa, por Else. Por isso a capital está estendendo-se sem parar em detrimento do crescimento da indústria de outros setores, considerada de importância primordial pelos lodianos.

Sobretudo, a administração de Else não fica devendo à do 'Eterno e Justo' Dálfon Palas (que fez Odenheim crescer a quase duas vezes sua economia original do começo ao fim de seu período de regência) e à de Meredith, da qual ela parece ter se inspirado para seu próprio mandato quase megalomaníaco.

De quê você nos protege?

Minha marcha maldita encontrou a estrada e as profundezas do céu quando não havia luz senão a das montanhas. Eu tinha comigo apenas uma sacola de couro (que eu carregava a tiracolo), que tinha uma boa quantia em dinheiro, algumas mudas de roupa, uma túnica, um agasalho grande e um revólver de fecho de roda, dos bons. Todas as vezes que eu rezei para não ter de usá-lo, acabei usando.

Dei de cara com o adepto. Não vi sua silhueta ao longe: quando dei por mim, ele estava na minha frente. Não era mais do que um rapazola. O archote que carregava fulgurava em seus mantos verde-claros e lançava luz em seu rosto sob o grande chapéu. Tinha uma bainha às costas para um cajado com a parte de cima ornada com um símbolo heráldico e folhas de cobre, andava com grandes botas de cano alto, próprias para a neve, lama ou qualquer coisa que ele visse pela frente naquelas terras.

Seus olhos pousaram em mim esperando uma explicação.

"Se me permite uma pergunta", disse, a que ele assertiu, "de quê você nos protege?"

"Eu não protejo vocês. Eu protejo os outros, de vocês."

Leitura: Os Idos de Odenheim

Negada à luz e lançada à guerra, Odenheim perdera Ifalna Palas, desposada e destronada. Ascendeu, a 701 anos da fundação, Dário Meredith, Rei Negro. O cetro do poder não lhe lavara o olhar feroz e após trinta e dois anos de guerra ele expulsou os ivoreanos da costa de Odenheim, pondo fim a um conflito calamitoso. Fez-se silêncio quando a guerra terminou: todos os soluços haviam sido calados. Torres de ferro erguiam-se em meio à neve em Lodis e a respiração das máquinas talvez fosse ouvida a milhas. Meredith retornou num momento de silêncio e com um esgar feroz cruzou a capital até o Palácio Oceânico. Os cabelos grisalhos não lhe deram a imagem do pai Soren, como todos imaginavam que o seria. A humanidade recuara em suas feições até se tornar uma presença surda e nuclear. O reino agora era regido pelo deus da morte.

Pouco mais de setenta cavaleiros armados voltaram das Ilhas Sagradas, onde estrelas se apagaram quando o incarna de Câncer, com asas que abraçariam o mundo em vermelho tremeluzente, chocou-se contra as fileiras dos vingadores de Iblis ivoreanos. Lembrariam de Dário andando através dos campos de batalha e massacrando, a golpes únicos com o machado Labrys, qualquer um que se aproximasse, inimigo ou aliado, trazendo sobre todo o corpo uma aura estranha e divina. Após o fim do conflito, o incarna, assim como tudo o que se referia àquela guerra, foi esquecido pelos odenianos. Diz-se que seu herdeiro, após manifestar seu poder máximo e retornar à forma humana, foi executado por um soldado ivoreano que tinha sobrevivido.

Naqueles anos, Meredith se aliou aos adeptos e parece ter adquirido um forte e estranho respeito pela Deusa. Suas virtudes invertidas foram disseminadas pelos seus cavaleiros, e muitos feiticeiros emergiram e foram destruídos naquela época – a maior parte, pelo próprio Meredith, pessoalmente. E apesar da Ordem dos Elmos Escarlates estar severamente debilitada pela guerra, aquele era, sem dúvida, seu apogeu, comprovadamente a maior força militar conhecida de Natal. Em trinta e dois anos o povo aprendeu a viver sob a bandeira vermelha de Meredith: talvez por isso poucos tenham vindo velar a Rainha Ifalna Palas quando ela morreu, ainda tão jovem, acometida pela amargura e levando consigo o herdeiro do trono que ainda estava em seu ventre.

A vida em Lodis nunca fora tão difícil. Homens eram convocados e até trazidos de outras cidades para trabalhar em turnos de mais de dez horas nas carvoarias e indústrias da capital. O advento das linhas de montagem tornou Odenheim a maior potência bélica no mundo. O trabalho era interrompido três vezes ao dia para orações escritas e pregadas por Else, Hierofante de Lodis e a braço-direito de Meredith. Ela subiria à sacada dos reis e, sob os céus escuros de Lodis, chamaria todo o povo para lhes falar de parábolas, tormentos e fé. E enquanto oravam, as sombras da cidade pareciam crescer.

Passados alguns anos, Meredith deixara de falar em público e, com mais algum tempo, deixara também de fazer aparições. A Hierofante Else lhe representava, junto com uma comitiva de Elmos Escarlates e regentes escolhidos por ele. E assim que terminou a guerra, foram dadas armas a quase cinqüenta brigadas de Elmos Escarlates que tornaram-se a referência de lei em todo o território. Meredith desapareceu dentro do palácio, recuando para se entregar a planos e devaneios. Muitos imaginam que ele esteve esperando ou preparando o momento certo para atacar novamente, mas todos os aristocratas ouvem seus passos insones e febris à noite. A Deusa não permitira que Pluma Isabelle lhe concedesse um herdeiro: os adeptos finalmente constataram que ela era estéril. Meredith a trouxe em seus braços, vestida em robes brancos e dormindo para sempre. Seu rosto puro e belo subitamente reganhara a juventude e o frescor. Foi dito que seu espírito ascendeu aos céus fazendo com que todos na cidade chorassem sem saber dizer o motivo, mas ninguém nunca descobriu o motivo pelo qual Pluma Isabelle morreu.

Após este fato Meredith abandonou o Palácio sem data definida para voltar. Foi visto em vários lugares em Odenheim, armado de seu machado e vestindo uma longa capa branca, faminto, furioso e parecendo procurar algo. Ele foi motivo de desespero em várias vilas ribeirinhas quando descobriram que ele estivera observando, com uma espécie de ira amarga e contida, todas as crianças enquanto brincavam fora de suas casas.

O fim da guerra não significou descanso ou prosperidade. As linhas de defesa de Odenheim foram mantidas tesas e rígidas, enquanto as cidades viveriam em um perpétuo estado de pânico. Else era pior do que o próprio Meredith. Templos foram reconstruídos em aço com o trabalho braçal forçado de todo o povo, grandes pedras foram arrancadas das montanhas e arrastadas para a cidade, e caravanas perpétuas atravessaram as regiões setentrionais de Odenheim, onde foram erguidos novos templos e cidades. Segundo ela, os odenianos envergonhavam Meredith com sua atitude lasciva perante a vida e a Deusa. Músicos e tanques ficaram eternamente prontos em uma parada de proporções titânicas que receberia Meredith quando este voltasse. Em 733 D.F., quase um terço da população de Lodis foi enviada em uma capitânia com destino ao mundo de Caliburnus (Calibur) com o objetivo de erguer uma nova Lodis naquelas terras e espalhar a palavra de St. Sharini aos ignorantes.

Foi o ano em que os odenianos entraram em contato com os primeiros caliburanos, cujos olhos estreitos trouxeram lembranças ancestrais ao único reptante que participava da caravana de colonização. Infelizmente, dificuldades na comunicação e a arrogância de alguns capitães da caravana fez com que a atitude dos habitantes do novo mundo rapidamente se tornasse hostil aos visitantes e eles rapidamente perderam a comunicação com a capital. Um dos últimos relatos recebidos mencionava um avantesma ou incarna de brilho incomensurável invocado por um líder espiritual caliburano contra os invasores odenianos.

No hiato e apesar do fogo cruzado, com a derrota dos ivoreanos, os movimentos separatistas do vice-reinado ivoreano da União do Mar Alvo rapidamente ganharam força e, no mesmo ano que a guerra terminou, uma parte da União do Mar Alvo conseguiu sua independência e passou a ser novamente chamada Faris: a República Nova de Faris. A conquista deveu-se a breve e decisiva atuação do dragão Keshal de Lorena, que, de posse de um poder inexplicável, limpou sozinho as falanges ivoreanas de toda a costa leste original de Faris. Muitos tiveram certeza que ele esteve possuído pelo poder de Iblis durante aquele tempo, mas, assim como o incarna de Câncer, pouco mais se ouviu falar do Dragão Redentor.

As fronteiras de Ivoire e do vice-reinado recuaram para quase metade do seu tamanho original. Ainda abrangiam o Almirantado de Hevelius, o Planalto de Lorena e a cadeia de montanhas Aesir, mas uma renovada ordem dos Dragões da República parece preparar uma marcha vitoriosa sobre os enfraquecidos ivoreanos.

Leitura: Os Idos de Longinus

Os trinta e tantos anos que se passaram não foram gentis com Longinus de maneira alguma. Por alguns momentos, o clã Fafnir cercou os longinianos em Margrave e houve a certeza de que o Império Sagrado seria destruído naquele momento. Mas o destino carteou uma surpresa decisiva quando o quarto incarna, Shu, foi descoberto e invocado pelo próprio Hierofante Ludgast, que já havia atravessado seus noventa anos. Tomado pelo poder divino, Ludgast confrontou Rama, líder incontestável dos Fafnires, numa batalha espiritual furiosa e espetacular que durou pouco mais do que alguns segundos e terminou com a morte de ambos, espadas cruzadas diante das multidões. Um grande choque de retorno e as lâminas dos últimos kishi extinguiram o restante do clã Fafnir numa única noite. Longinus inteira uniu-se em oração e a aurora do dia seguinte espalhou o sangue do clã Grendel e de muitos outros clãs reptantes sobre a terra longiniana em nome do grande hierofante, e as flores brotaram rubras quando despontou a primavera.

Ludgast foi sucedido pela kishi Neman, uma heroína de guerra de disposições e princípios desconhecidos. Sua selvageria se revelou quando, na cerimônia de sucessão e vestida com os ornamentos imperiais sagrados, ela assassinou a sangue frio e a um só golpe um reptante adepto que ousou a tocar para lhe abençoar.

Sob a guarda da Imperatriz Neman, porém, Longinus pôde prosperar e se reconstruir. Em pouco mais do que dois anos, o império recuperara o rubor que tinha antes do início das guerras contra os Fafnires, há quase um século. Muitos guerreiros abandonaram suas espadas para lutar pelo império, desta vez plantando, colhendo, reconstruindo e reconsagrando as terras maculadas pela feitiçaria maléfica dos reptantes.

O renascer do Império Sagrado de Longinus passou quase despercebido para os regentes dos outros países, mas não para Cédara. Tratados comerciais há muito esquecidos foram novamente levantados pelos aristocratas longinianos. Ivoire chegou a tentar uma aproximação, mas a Imperatriz Neman não havia esquecido, tampouco perdoado a ofensa de Verne há tantos anos.

Assim que teve recursos (fim de 734 D.F.), Neman lançou uma cruzada de kishi para perseguir e destruir os desertores de Longinus na guerra como exemplo. O infeliz ato resultou na morte de vários longinianos em terras farisienses, ivoreanas e cedarianas, muitos dos quais haviam já constituído famílias. Muitos cedarianos (e também a imprensa) ficaram aterrorizados com a total falta de clemência de Neman para com os fugitivos de guerra – a imperatriz passou de heroína a uma tirana em poucos meses. A cruzada obviamente não conseguiu desenterrar todos os traidores, e persiste até os dias de hoje.

Reconhecidamente, Longinus mantém uma aliança informal com Cédara e Rublo; entretanto, ninguém sabe o que se passa na cabeça de Neman e qual será o próximo passo na sua saga de orgulho e destruição.

Transcrição do Tomo das Eras, LI

Da terra, eis, veio um grande espírito
A todos lembrou a pedra da criança
Uma vez, o espírito tomou a forma das coisas
E ascendeu aos céus
O árbitro que virá pelas almas dos desencantados
Após as palavras lidas
E o mal feito.

A volta.

Retornei a nosso orquidário (os gentios o batizaram Mirventura) com os olhos tristes, nem a Viola pude ter um sorriso. A ausência de qualquer descoberta está acabando comigo e pela primeira vez pensei que esta escapada pode ter sido um grande problema.

Durante a noite Viola veio a mim e contei toda a verdade a ela. Estava desesperado e me sentindo no final das forças, sem condição de pensar em como escapar. A nobre dama prometeu que me ajudaria, para minha surpresa, e no dia seguinte, enquanto aprumava um buquê, falou baixo a mim através de uma parede de folhas.

'Há um caminho', ela disse, 'ao sul, que levará seus pés para um porto livre. Lá poderá convencer alguém a te levar por algumas rúpias. O adepto passa longe deste ponto em sua rota normal, mas já o vi passando lá algumas vezes. Vá com cuidado.'

'Eu ainda tenho interesses por aqui', respondi a ela. 'Fico ainda uma lua.'

'Não. Vai, aqui teu coração não pertence', ela disse. 'Antes que pertença a ti meu coração.'

Pude pronunciar o nome dela ainda uma vez antes dela sumir nas folhagens. Parti, chorando, naquela noite, carregando comigo o rosário que ela tinha deixado, profanando sua fé e fazendo um último mal a Viola, talvez a última mulher que eu tenha amado.

Leitura: A História de Hepzibah, parte 4

Uma flecha cortou o nada em que se abrigava. Atingiu ao longe a aura que o prendia à terra e ele viu que ainda havia... Seu poder feiticeiro se libertou numa coluna de chamas vermelho-vivo abrasando o chão e tudo, e da certeza da morte ele despertou para a batalha.

O arqueiro vinha com guerreiros que berravam contra os pardos, golpeando com suas espadas em raios de aço e ar que atingiam ao longe. Antes que pudesse tentar se defender deles, pararam de atacar. Não queriam matá-lo. Pegaram os ivoreanos voltando de uma missão, isso sim, e a eles destruíram. Ficaram ao longe fitando-o à distância. Não tocaram os pardos: suas geomancias e flechas o fizeram.

Hepzibah se levantou e tentou falar a eles. Ouviram os dragões um guincho, como uma palavra de ódio, mas os olhos do meio-djin mostravam-se agradecidos. Aproximaram-se com cautela. Um colheu do chão uma pequena lis-de-Ivoire. Não pensariam em nada melhor. O jovem dragão ofereceu a lis a Hepzibah e ele a tomou em mãos trêmulas. Sorriu, se é que sabia sorrir.

Levantou-se de seu limbo e juntou-se aos dragões. Havia um entendimento irracional entre eles, uma aliança inconsciente. O arqueiro chamava-se Fiachra e era o líder de um grupo de dragões-da-República que ficaram ferrados e presos em território ivoreano. Terroristas e assassinos, uma vez uniram-se à XV para explodir uma usina em Hevelius. Hepzibah juntara-se a eles muito depois disso, quase cinco anos depois. Já havia findado a Décima Quinta e tudo que remetia a ela. Era o auge da guerra dos odenianos com os ivoreanos. Os dragões não estavam em lado algum e odiavam as duas partes, os ivoreanos mais do que os odenianos.

Hepzibah permaneceu unido a eles, lutando contra os odiados ivoreanos até que todos estavam mortos, quase dez anos depois. Viveram juntos todos os desfortúnios de quem batalha uma guerra que já havia sido perdida. Fiachra morreu inútil no meio do fogo, suas flechas caladas quando um dia cantavam livres antes de enterrarem-se em sangue pardo. Hepzibah o Improvável (como o chamavam) foi o último dos Dragões de Chumbo de Fiachra, e herdou a disciplina pálida e fria do ódio dos corações humas. Havia aprendido a luta dos homens. Sua força oculta de meio-djin o fazia poder carregar duas espadas quando todos levavam somente uma. E eram grandes espadas - espadas de Dragão. Hepzibah não podia parar de lutar, morreria se o fizesse. Aprendeu o ódio, e não mais viveria em paz sem exercer sua única satisfação. Tinha medo de destruir todos os ivoreanos: não sobraria ninguém para ele ganhar seu dia.

Rumou para Odenheim. Haveriam de aceitar duas espadas contra os pardos. Isso foi em 716 D.F., as fronteiras estavam tomadas, Capela ocupada e as tropas de assalto terrestres avançando duramente para Vercel.

Leitura: A História de Bácari e Trói

Haviam praias, haviam peixes, haviam pescadores. Haviam Bácari e Trói, desde muito. Os antigos acompanhavam os cardumes por terra e migravam pela costa leste da República. Levou muito tempo até que alguns pontos fossem descobertos como de convergências de vários tipos de peixe ao longo do ano. Na verdade, foram descobertos dois destes paraísos da pescaria: Bácari e Trói, obviamente.

Os nomes vieram das duas espécies de peixe que mais apareciam nas imediações, o Bacará Real – grande, cinza e lento – e o Totrói – com a protuberância óssea no focinho que mais parece uma espada.

Os pescadores ficavam metade do ano em Bácari, metade do ano em Trói. Muitos tinham uma namorada em cada cidade. Alguns tinham uma família em cada cidade. Muitos tinham pouca ou nenhuma idéia de quem era seu pai, mas as cidades prosperavam e todo mundo se conhecia. Fizeram escolas em Bácari, um pequeno teatro em Trói, e já vinha uma geração daqueles que estudaram fora, poetas, médicos, engenheiros, que voltavam para trabalhar nas suas cidades de origem.

Na época em que os ivoreanos investiram na madeira de Faris, o conselho em Belgrade decidiu que seria interessante para o futuro do país que existisse uma grande ferrovia ligando Glenária e Bácari.

O conde de Trói fez um escândalo. Alegou que Trói era muito mais tradicional, que a população era maior, que era completamente ilógico levar os trens para Bácari quando Trói estava ali, mais perto e mais interessante. A população fixa e simples não entendeu muito bem a história da ferrovia e no mais, eles queriam que os bacarenses se ferrassem, mesmo.

O barão de Bácari prontamente iria se defender dos argumentos do outro, mas aí ele soube que o plano da Estação Ferroviária Primeira de Bácari colocava o prédio bem no lugar onde atualmente ficava sua mansão com jardim de inverno. Entretanto, ele foi forçado a manter sua posição pelos intelectuais de Bácari, que queriam a ferrovia e ameaçavam amotinar-se sobre o barão.

Como tudo que acontece em Faris, os Dragões da República foram chamados para mediar o impasse. Descobriram que cada cidade tinha um conjunto diferente de virtudes e defeitos, mas nenhuma era melhor do que a outra em absoluto. Um Dragão jovem chegou a sugerir que decidissem o destino da ferrovia tirando a sorte nos dados, mas ninguém deu ouvidos a ele. Grande erro.

Ficou acertado (bem à moda dos Dragões) que haveria uma competição entre quatro espadachins – dois representando cada cidade. Quase todos os pescadores não tinham quase treinamento, em absoluto, com a espada, e se perguntaram se não seria mais interessante uma competição de pescaria. Depois alguém lembrou que ninguém realmente morava em um só lugar entre os pescadores e iria ficar difícil escolher que lado iriam representar. De fato, os pescadores nem foram consultados a respeito da tal ferrovia.

Surpreendentemente, os escolhidos para defender Bácari foram dois jovens filhos de um pescador que lá residia, enquanto os escolhidos de Trói foram o irmão do conde, Guntram de Trói, um aventureiro jovem e forte que bandeava com os dervixes do norte, e Nila, uma adepta estrangeira que fez de Trói seu lar.

Guntram e Nila destruíram os escolhidos de Bácari facilmente, primeiro a golpes calculados com as espadas de bambu, depois a pauladas mesmo, já que eles não se rendiam. Os filhos de pescador de Bácari foram arrastados, inconscientes, do ringue improvisado armado perto do Poço das Botas. Fazia um sol rachante.

No dia seguinte, festa em Trói. O conde anunciava ao populacho as melhoras que a ferrovia traria (e depois de um tempo, basicamente do quê se tratava, já que todos estavam interessados). A bebida corria solta, ninguém trabalhou, os peixes dentro d`água até estranharam o fato de não ter havido o genocídio diário. Todos os troianos ficaram animados com as obras, com os trens, e com a nova possibilidade: viajar.

Quando anoiteceu, um grupo compacto de Dragões e citadinos de Bácari chegou na cidade, para falar diretamente com o conde. Quem viu, das casinhas com as lamparinas acesas, viu que boa coisa, não era.

O conde voltou pra casa cheio de amargura no coração. O torneio havia sido considerado inválido, porque o barão de Bácari conspirou contra a própria cidade colocando filhos de um pescador no torneio ao invés dos grandes espadachins da Academia Real de Heilwig de Espada Odeniana, que, apesar de pequena e recém-chegada, contava com um bom número de esgrimistas talentosos. Como todo bom filho, Guntram tomou as dores do pai. Juntou seus amigos dervixes e num ato maligno de vingança, fizeram um arrastão na costa, no meio-caminho entre Trói e Bácari, justamente na época da reprodução dos bacarás.

Surpreendentemente, ninguém soube do crime a princípio. Mas sua conseqüência foi muito pior do que o esperado. A escassez atacou Bácari com violência e quase todas as famílias vieram para Trói. O preço do peixe inflacionou de uma maneira incrível, e ninguém queria passar fome; além do mais, muitas mulheres encontraram as “outras” e saiu porrada pela cidade inteira. Mais além do mais, Guntram, completamente bêbado, admitiu ter passado a rede nos bacarás e escapou por pouco de morrer na mesma noite. Depois que a notícia se espalhou, botaram fogo na casa do conde. O caos se espalhou pela cidade toda. A Guerra do Peixe durou três dias e duas noites.

Quando a poeira baixou, Trói estava em destroços. Quem não assumisse um lado da briga era considerado covarde e não era bem-vindo em nenhuma das cidades. Quem fosse de Trói, não entrava em Bácari, e vice-versa. Muitos pescadores tiveram que escolher entre dois amores e até hoje não sabem se fizeram a escolha certa. Outros têm certeza. Outros estão morrendo para voltar e não podem.

A ferrovia não foi construída e não se voltou a falar no assunto. Tiveram rumores de que nunca houve projeto de ferrovia alguma. Mas o problema de Bácari com Trói tornou-se folclórico e os moradores de uma cidade falam horrores dos moradores da outra.

Guntram e seu pai, depois do incêndio e ao que tudo indica, mudaram-se para Belgrade do Norte assim que a cidade foi construída. O garoto cresceu, e por fim se arrependeu do que fez, mas já era tarde.

Artigo: O Estilo Divisionista

A poesia veruniana do quinto século implorava por uma arte nova, uma arte vibrante, enérgica, e sobretudo, uma arte que não fosse óbvia e uma arte difícil, intrincada, que poucos pudessem dominar. Foi Seurat de Drift o inventor do divisionismo, um estilo de pintura técnica que envolvia o uso de pequenos pontos de pigmento colorido para formar uma imagem à distância. O estilo divisionista é caracterizado pela Névoa, um elemento onipresente em todas as suas artes. As coisas são vistas através do que parece ser uma camada espessa de nuvens: muitas vezes são o que não parecem ser à primeira vista; muitas vezes são duas ou três coisas ao mesmo tempo. Muitas vezes o artista não especifica o que pintou e hipóteses são levantadas até os dias de hoje.

A dúbia pintura divisionista foi usada como protesto no início do século por artistas dos dois pólos de Odenheim. Títulos sugestivos eram acompanhados de pinturas que mostravam duas faces, sendo uma delas uma crítica ou ridicularização de Meredith ou de um dos seus. Era como uma mensagem secreta, que poucos poderiam entender; como uma crítica ferina escondida que poupava a vida de seu criador. Muitos consideravam

É verdade que alguns divisionistas têm trabalhos considerados revolucionários até hoje. Figuras que despertam a imaginação e o subconsciente mudam ao longo das eras na concepção das pessoas. Muitos trabalhos que tornaram-se subversivos por esse processo foram destruídos pelos agentes da coroa.

Os campanários ainda não me abandonaram.

Nem em mente, nem em coração. Nossas orquídeas estavam os decorando, 'plantadas' em roseiras verticais nas quais pendiam por cima das pedras graníticas e nuas. Eu já via os raios descendo por sobre aquela capela, a luta dos adeptos contra o avantesma, a submissão e o poder. Por um momento um pensamento fulgurante e revelador sobre aquilo se apossou da minha cabeça, me fazendo ter uma compreensão inteira da situação segundo os planos de Maeve para nós. Mas como se proibido, aquele pensamento me fugiu por inteiro, deixando somente o espaço vazio atrás de si. Isso vem me acontecendo com assuntos menores há algum tempo, mas nunca uma compreensão esquecida me atingiu tanto quanto essa. Foram segundos de êxtase de entendimento nos quais eu não tive tempo para memorizar.

Os céus, brandos com as nuvens correntes de Rublo, queriam me dizer alguma coisa. Eu estava inútil para compreender, enxergando apenas o que estava dentro de mim. A viagem de volta passou em um suspiro.

Notas Acerca das Transcrições

Como bem se sabe, todos os Odes dos tomos escritos por St. Sharini foram manuscritos em titani, a língua primeva de Natal (provavelmente a mencionada na mítica história dos primeiros homens silenciosos e daqueles que aprenderam do titã de ferro), que deu origem ao dialeto comum que fala-se hoje em dia, o alvalli. A transcrição do titani para o alvalli reduz o tamanho do texto significativamente; sabe-se que no titani todas as palavras são acompanhadas de todos os seus sinônimos; a distância e a diferença da primeira e da última palavra dão ênfase ou não naquele termo. Poucas pessoas dedicam-se ao estudo do alvalli hoje em dia; aparentemente ele é impossível de se pronunciar, salvo longas orações que foram preservadas desde os Dias Antigos, provavelmente datando de menos de 2000 A.F.

Transcrição do Tomo das Eras, L


A luz veio sobre a alvorada
A alvorada veio sobre as estepes
As estepes rolaram sobre tudo que pacífico era
Em um só som majestoso e pacífico
Sobre um só tom, diapasão dos fanáticos
E em uma só luz, imutável e infalível.

Artigo: O Estilo Firrareano

Nos condados de Firrara próximos a Veruna, nas amplidões de Rublo, houve durante o quarto século um grande culto ao folclore gentio na literatura e nas artes. Fundou-se o estilo artístico de Firrara, que faz de tons escuros de verde, vermelho e negro milhares de desenhos poluídos, detalhados e estranhos, inspirados pelo subconsciente dos habitantes de um lado amplo e quase desabitado de Oden, Ayanan.

Hoje em dia o estilo firrareano está um pouco passado. Quase todo odeniano tem um quadro, um escudo ou uma cornija de lareira feito com as cores de Firrara. A época grande do estilo foi uma em que muita gente subitamente decidiu produzir peças de arte e o estilo foi um pouco banalizado. Em Rublo, hoje em dia, está havendo, contudo, uma revitalização do estilo feita por artistas verdadeiros, inspirados e imaginando cenas fabulosas, muitas vezes substituindo as cores negras pelas brancas numa licença poética ousada.

A literatura firrareana é apressada e prolixa. Contos de anos de detalhes são feitos em parágrafos e às vezes uma página é usada para descrever uma cena em uma velocidade intensa e passional. A intenção original era reproduzir alguém que tenha visto algo fabuloso e queira contar tudo sem conseguir ter por onde começar... mas o estilo evoluiu para uma espécie de êxtase poético onde todas as palavras se unem para fazer uma descrição ou uma cena perfeita.

A música firrareana, se é que houve um estilo de música firrareana, era feita com bandoneons e violões. Era música de gentios, que foi explorada por um ou outro compositor erudito (notavelmente o Monsenhor Barclay, que deve ter composto ao menos cinco odes para cada conjuração que já pisou o solo de Natal). Explorava poesia como a da literatura, limitada pelo contexto melódico da música. Nada grave a dizer. Era música tocada por poucos e cantada por muitos, que hoje em dia quase não se executa salvo em áreas de ruralidade intocada pela urbanização e organização de Rublo.

Lothair.

A colheita desta semana foi a melhor desde nossa chegada. Insisti com meus camaradas de ir, desta vez. Quase não me deixaram ir - todos queriam ir a Lothair e mostrar serviço. Até parece que não sabem que a recompensa do nosso trabalho é o nosso trabalho e nossa sobrevivência, e que o fato de um de nós ter de ir a Lothair é uma obrigação, não uma espécie de passeio.

Imagino que deva começar a planejar minha saída deste lugar. Subestimei a vigilância dos rublenses. O pior de tudo é que este povo não está interessado em dinheiro, que nada vale nessas terras. Espero que a tal 'autorização' para abandonar as terras seja fácil de conseguir, ou estarei preso aqui. O que não é uma perspectiva tão desagradável, mas eu tenho um compromisso com minha obra.

Viola veio se despedir de mim no carro: era uma picape das antigas, que eles fingem nos convencer que funciona à díesel e nós fingimos acreditar. Na verdade é uma máquina Matra, movida a madrejaspe geomântico e encantamentos de feitiçaria. A fumaça que sai atrás denuncia: é azul-química, refugo de madrejaspe. Anda bem, pelo menos, cruzando as estepes que separam nosso orquidário de Lothair. Guardei na cabeça o caminho tomando como referência as placas que ultrapassamos: confusas, mas muitas, repletas de signos heráldicos para as cidades e construções, tudo estatizado e sinalizado para uso das autoridades. Não ensinam essas coisas para quem não precisa aprender. A vida aqui é planejada.

O motorista não era de muitas palavras. Perguntou das orquídeas ("Ótimas, em grande quantidade"), perguntou se estávamos felizes ("Claro"), perguntou se alguém estava mostrando intenção de sair ("Não, senhor, claro que não").

Eu não tenho cara de farisiense, Maeve sabe que eu não tenho. Pior, eu não tenho cara de quem tenha sofrido na vida, como de fato não sofri, Maeve foi generosa comigo e com minha família. Sempre fiz o que quis, sempre estive longe do perigo, sempre antevi revoluções e sempre estive a distâncias seguras de tudo que estava acontecendo. Cédara neste último século, principalmente o sul próximo de Axúria, foi a região mais pacífica e próspera para se viver. Houveram pequenos combates nas fronteiras do norte, mas muito poucas casualidades, lutaram os cedarianos mais com máquinas e barricadas do que com pessoas. Lutaram a boa batalha, tiraram campos de cultivo preciosos dos ivoreanos, não perderam quase ninguém. Só esqueceram de devolver o que pegaram pra Faris quando tudo terminou, mas nos dias de hoje creio que isso seja só um detalhe.

No sul, tudo foi calmo. Uns poucos jovens se despediram de suas famílias para conhecer as guerras no front para não voltar nunca mais. Foi triste, mas foi calmo. Principalmente perante o caos em que estava o resto do mundo - isto ainda antes dos adventos da Décima Quinta, pouco antes do início do nosso sétimo século da Fundação.

Permiti que meu pensamento voasse. Perdão.

Os muros de Lothair eram chantelianos, altos, pedra sobre pedra em uma nova cidade feita com muros com placas de metal curado, tratado e passado alquimicamente, com esculturas de aur, monstros e bestas de um folclore moderno ressurgindo em Rublo. Não foi-me permitido ver muito. Não era cidade, ninguém viveria ali. Era um templo sendo construído sabe-se lá com que metais e riquezas (porque é uma obra monumental em ouro, azul escuro e pedras negras). Era um templo alto com torres de granito, lanças de ouro, cinco campanários altos com sinos. A mandala estaria dentro para descer um puta avantesma.

Alguma coisa deve estar para mudar.

Artigo: A Tradição dos Corais em Odenheim

Sabe-se que do ócio acontece a criação; pois, de tantos anos de paz, surgiu em Odenheim uma invejável tradição. Além de receberem escolaridade completa, noções de matemática, teologia, náutica, astronomia e história, as crianças odenianas, quase sem exceção, aprendem a ler partituras e cantar em coros. Muitas carregam a habilidade com a voz para a idade adulta - a maioria dos grandes intérpretes de Natal é composta de odenianos. A marcha 'Vermelho de Triunfo', eleita o hino de guerra de Odenheim durante as guerras da Ilha Sagrada, contém uma grande parte feita em canto coral, cantada com emoção e beleza pelos odenianos. Obviamente pode-se dizer o mesmo dos povos de Rublo, apenas recentemente separados de Oden politicamente. Imagino que há uns bons vinte anos não se ouçam bons corais aqui. O país está ocupado demais para servir-se de música e prazeres terrenos agora, como estou percebendo com esta minha pequena experiência pessoal.

O maior compositor erudito de música coral odeniano com certeza foi Lorde Hymns de Asfaloth (401 D.F. - 526 D.F.), que durante sua vida compôs três óperas e mais de duzentas peças para solistas acompanhados de chembalo. O chembalo é um instrumento clássico de Oden, um primo antigo do cravo cedariano. Seu som é violonístico e limpo, sem ataques fortes e muitas variações em dinâmica de som.

Artigo: O Estilo Chanteliano

O estilo arquitetônico odeniano mais expressivo durante estes sete séculos desde a fundação do país foi o estilo chanteliano antigo. Desde o princípio de Oden, os peregrinos viajantes de Outros Mundos, principalmente os artistas, buscaram um retorno às memórias de seus lugares de origem, com monumentos enormes, grandes castelos, estátuas que levam eras para serem construídas e padrões intrincadíssimos esculpidos em metal, muitas vezes metais preciosos. Fascinados com a abundância de ouro em Natal, os ourives de Outros Mundos legaram muitas relíquias maravilhosas ao povo de hoje, muitas das quais guardadas em museus e palácios.

A palavra que resume o estilo chanteliano é 'grandioso e abundante'. É um estilo que celebra o apogeu de uma civilização, a fartura e a extravagância; formas sinuosas e primores esculturais são sua característica mais marcante, bem como o uso de metais preciosos para quase tudo, desde muralhas e paredes até estandartes e armas. Os artistas que seguem o antigo movimento chanteliano pensam sempre em impressionar com proporções.

O Palácio Oceânico, casa do Templo de Lodis e do Conselho Real Odeniano é um exemplo expressivo de arquitetura chanteliana, com torres gigantescas, um relógio que pode ser visto a quilômetros de distância, e um tamanho até hoje desconhecido por ter sido construído mar adentro. Boa parte de suas torres fora feita de prata; muitas de suas lanças e espigões têm pontas de diamante e prata. Todas as paredes internas são decoradas com pinturas harmoniosas que ocupam todo o espaço disponível. As paredes externas são, em sua maior parte, esculpidas em baixo-relevo com figuras míticas de heróis e monstros, reais ou imaginados.

As espadas de cerâmica da velha-guarda odeniana também são um exemplo de estilo chanteliano, na medida que procuram imitar padrões desenhados no metal com cerâmica alquímica e seguem, bem de perto, os padrões estéticos da época.

A música daquele tempo e de muitos compositores contemporâneos também pode ser considerada de estilo chanteliano. As músicas chantelianas usam harmonias simples e tocantes em formações orquestrais imensas. Muitas vezes essas músicas têm temas que se repetem e interlaçam. A maior parte das peças individuais é de grande duração - muitas atingem mais de quatro horas ininterruptas - e elas eram compostas sobretudo para celebrações como nascimentos de herdeiros, coroações, cerimônias de cavalaria e condecorações militares.

A ópera da Tragédia dos Djins, uma das mais encenadas nos teatros odenianos, pode ser considerada música chanteliana com suas pouco mais de duas horas de duração e seu dueto de cantores com temas próprios.

Sobretudo, o estilo chanteliano prospera através das eras e é muitas vezes imitados por artistas estrangeiros. Sobreviverá enquanto durar o Palácio Oceânico e todas as obras por ele inspiradas.

Artigo: A Cidade de Wolfram

Wolfram é uma das mais setentrionais cidades de Odenheim, no extremo norte junto com Paris, casa da maior parte dos nortistas, lar de uma aristocracia esquecida e tristonha, sustentada por taxas e completamente improdutiva salvo uma armoraria levada por um único armeiro centenário que vez ou outra presenteia a capital com uma espada superior. Wolfram luta para manter-se presente e atual num país onde os aristocratas cada vez mais perdem o valor perante a Quimera.

A aristocracia de Wolfram é formada pelas casas Hallein e Mauthausen, longas aliadas que hoje em dia são consideradas uma só família. Enquanto bons governantes, vários Mauthausen se tornaram feiticeiros durante a guerra. Conta-se que, após expulsarem os ivoreanos de suas terras, fundaram uma vila nas colinas nevadas de Isfeld onde pudessem viver em paz com seus pecados. O pavor contra os feiticeiros da Casa Mauthausen foi grande o suficiente para que o povo unisse forças para forjar uma espécie de gládio de proteção (O Gládio Místico de Fulram). Segue um extrato dos textos de Granville acerca do assunto.

"As forjas do Norte setentrional de Odenheim começaram a produzir estes gládios copiados dos originais lodianos quando houve (ao redor de 730 D.F.) um surgimento drástico de feiticeiros na casa Mauthausen, que começaram a ameaçar a segurança dos condados nobres. Naqueles anos, retirou-se muita prata das minas nevadas próximas a Páris e Wolfram, e quase todo o estoque foi gasto na composição das espadas Fulram (cujo nome foi tirado de uma prece antiga à deusa contra os feiticeiros, vere stratos fugit fulram).

De tamanho e peso pequenos, muitas destas espadas eram carregadas pelas filhas dos aristocratas, às quais eram ensinados os fundamentos da luta com espadas, para que elas pudessem se defender de raptos e ataques místicos. Como os feiticeiros muitas vezes atacavam a partir de uma posição oculta, firmou-se o hábito de atar uma lâmina de espada Fulram à uma das tranças da menina, para que a mágica pudesse ser defletida, mesmo pelas costas."


Dos textos de Granville conclui-se que os Mauthausen que não se exilaram caíram na criminalidade para sobreviver. De fato, houve um pedido de socorro feito de Wolfram em 714 D.F. que nunca foi respondido. Diz-se que os Mauthausen de Isfeld vieram em socorro do povo mais uma vez contra os seus, e destruíram ou levaram para a cidade deles todos os dissindentes. A casa Hallein hoje em dia detém todos os gládios Fulram.

Neva muito em Wolfram; durante a maior parte do ano, os mares ao redor de suas estepes ficam cobertos por gelo; o solo fica enregelado e a grama não nasce; por isso, qualquer atividade primária produtiva é desencorajada pelas autoridades. Os Mauthausen foram grandes joalheiros e caixeiros-viajantes no passado, mas a tradição está esquecida desde o início da guerra. Os Hallein são uma família grande e nobre de nascença, de uma etnia misturada com os ivoreanos, de cabelos escuros e lisos. Suas várias ramificações de famílias também têm cabelos pretos, indicando a prevalência dos genes ivoreanos.

Os odenianos de cabelos pretos são chamados 'nortistas' pela maioria das pessoas justamente por causa dos Hallein. Diz-se que a ascendência ivoreana deles vem da longa estada de aristocratas de Yansar durante um cerco de rebeldes ao redor do século 4. Os aristocratas ivoreanos abrigaram-se diplomaticamente em Wolfram por mais de 140 anos. Muitos casaram-se com as nobres locais e tiveram filhos mestiços. A cor parda da pele se dissipou ao longo das gerações, mas os cabelos negros permaneceram até hoje entre a maior parte da população nobre de Wolfram.

Leitura: Câncer em Capela

Isto é parte do relato de um adepto capelita que presenciou a retomada feita por Meredith na cidade com o prometido possuído de Câncer.

" (...) Os pardos têm um código que rege a maneira como eles guerreiam: eles matam civis. Não de maneira 'acidental' ou 'incidental'. Matam civis ordenadamente, oferecendo-lhes perseguição e morte rápida com tropas de solo, ou tiros e morte rápida com arilharia vinda da costa. Poupam os adeptos com medo de ofender Maeve quando os avistam e identificam. Interrompem os tiros e despacham tropas de solo para capturar, prender e desabilitar o sacerdote. Como eu. Privam-nos de morrer junto com nosso povo e fazem-nos vê-los matando a todos.

Para os pardos, que têm uma cultura ancestral de guerra, combater é um aprendizado, tanto como ler livros. Não nos atacam idiotas armados tampouco aldeões amedrontados. Atacam-nos homens inteligentes que sabem o que estão fazendo e reagem a qualquer mudança.

Naquele dia estavam todos ansiosos. Não pelas próprias vidas, mas ansiosos com curiosidade quase acadêmica. Meredith viria com o incarna retomar Capela, e eles seriam os que estariam lá para defender o território. O primeiro ataque de incarna havia sido nas Ilhas Sagradas e obtivera resultados espetaculares, mas eles não sabiam disso. O Império Ivoreano havia impedido esta informação de se alastrar e restava neles uma dúvida: como iria vir (voando, pela água, por solo), e como poderia ser morto (com tiros, lanças, milagres).

Ocupando Capela estavam quase quinhentos homens densamente armados, com boas munições e lanças consagradas, além de duas naus encouraçadas ivoreanas, a Nau Obi e a Nau Biblos, mantendo nossa casa e fortaleza sob canhões e ainda terminando de derrubar o que nosso povo levantou ao longo de séculos. Nos prenderam como reféns nos postos de vigilância (hoje chamados Monte Vigílio) e nos deixaram com uma vista privilegiada do que estava acontecendo. Mal nos falávamos. Nossos olhos estavam presos em suas formações.

O ataque estava atrasado dias segundo o que a inteligência ivoreana previa. Quando virou uma fase da lua, a comunicação dos batedores e helicópteros estava cortada com os rádios dos ocupantes de Capela. Quando começaram a pensar em prosseguir, a terra começou a tremer.

Uma coluna de luz fez surgir um ser alado sobre a Nau Biblos, enquanto uma tempestade distante que se abriu revelou a frota odeniana chegando por mar. O ser repousou no ar evocando a efígie luminosa de Câncer, uma mandala que tomou os céus em luz. Não houve tempo para pânico na nau. Os ivoreanos em terra viram aquela luz descer do céu como uma coluna de fumaça e a tripulação já estava morta, consumida por luminosidade, por dentro de seus corpos. A luz jorrava para fora de suas bocas e olhos como se fossem djins feridos e retornava às asas do incarna. O corpo do prometido mal era visto no meio da torrente de luz que ia, tomava vidas em massacre, e voltava. Pior. Era luz, luz divina. Antes de prosseguir para a Nau Obi, o prometido fez de uma das asas uma espada de centenas de metros e golpeou transversalmente a Nau Biblos, a explodindo com um único impacto de som incrível que incinerou os mortos e levou as vidas das tropas que vinham em carga contra ele.

Imediatamente, a Nau Obi começou a recuar e o incarna voou para cima da cidade. Nesta altura já havia fogo aliado vindo da frota impedindo o avanço das fragatas de guerra ivoreanas, e a infantaria aliada com brigadas da Pristina invadia Capela por terra, aproveitando-se do terror dos ivoreanos para libertar os sobreviventes (como nós).

Não houve sequer um golpe de espada naquela noite, pois com um tremular de suas asas o incarna ceifou os soldados que já desejavam estar mortos há muito tempo. (...)"