Bombordo! Estibordo!

Danem-se todos, este navio será nossa sepultura! Cinco dias sob esse vento e completamente no escuro, e ainda dizem que estamos em condições climáticas naturais para essa área! Tem alguém tentando nos derrubar aqui! Que Maeve nos ajude!!!

Leitura: A Aristocracia de Gartcross

Um amigo meu, já muito idoso, costuma dizer que, justamente quando você pensa que já viu de tudo, aí que as coisas mais fantásticas começam a acontecer. Quem iria supor que, há pouco menos de cinco anos, existia um condado cravado no coração de Faris, ali, bem perto do famoso Poço das Botas? Ali, onde a água é farta e o Barum desce caudaloso, uma brava dama de Odenheim um dia teve um sonho e decidiu ter seu próprio castelo.

Separada de seu amante pela guerra e trazendo pelas mãos um filho ainda criança, Fedra, a Mística era uma mulher dissimulada, soturna e mestra nas artes de enganar e seduzir. Usou todos esses talentos para reunir uma comitiva de jovens dervixes para limpar e preparar sua área.

Contaram-me que ela era a musa e a inspiração dos dervixes, e que os mais seletos e esforçados poderiam ganhar o seu amor. Seu filho, Adrien de Gartcross, tendo aprendido com os mais velhos e experientes, aos dez anos já era um caçador e um espadachim excepcional, muitas vezes dando ordens aos dervixes, que Fedra insistia em que eles cumprissem. O garoto era um líder e um ídolo entre as crianças do condado. Aos quinze anos ele já golpeava como um homem e conseguia derrubar serretes enquanto eles mergulhavam. Sua coragem e força eram invejáveis, assim como seu tato e elegância. Tinha o hábito de desafiar estranhos para duelos, e quase sempre vencia. Sua mãe não poderia ser mais orgulhosa. Adrien imaginava que, para passar o resto da vida no condado, teria que ser o deus do condado. Por muito tempo, ele foi.

Talvez nem Fedra mesma saiba disso, mas seu filho prodígio foi o responsável por enterrar seu sonho. Seus hábitos dândis o levaram a desafiar Harish de Immaculata, um dervixe bandana-vermelha que havia desacatado uma garota do condado. A batalha foi à noite, sob a luz de archotes, e todos assistiram Adrien humilhar nobremente e derrotar o experiente dervixe, com agilidade fantasmagórica, empurrões e uns poucos golpes, todos decisivos.

A derrota e as vaias e chacotas do povo do condado tiraram completamente Harish do sério. Possesso e enlouquecido de fúria, o dervixe incendiou um matagal próximo à uma encosta, que no dia seguinte começou a desmoronar.

Fedra, Adrien, os dervixes e todo o povo viram uma luta de quase uma década ruir sob as pedras que desciam dos montes próximos ao Barum. Assistiram, de longe, à noite, as últimas rochas soterradoras descerem sobre suas casas, sobre suas hortas, sobre o poço.

O povo debandou em caravana, apesar dos apelos de Fedra. Culpavam os dervixes, a quem acusavam de usar feitiçaria e profanar as palavras de Maeve. Os dervixes, propriamente, partiram atrás da cabeça de Harish. Arrasada, Fedra enviou Adrien para encontrar-se com o pai em Odenheim. Não sei qual destino ela teve, largada sozinha em meio aos destroços do seu sonho.

Leitura: Os Filhos do Canhão

Pouca gente sabe disso, mas no mar, existem rotas fixas para ir praticamente de qualquer lugar a qualquer lugar sem deixar de, periodicamente, passar sob uma estrela. Estas rotas foram traçadas pelos cedarianos há muito tempo atrás para que, durante as longas viagens de antigamente, crianças pudessem nascer sem privar-se das bênçãos divinas.

Quando os altíssimos escolheram seus lugares na abóbada celeste, eles não pensaram que viríamos depois. Não sabiam se andaríamos em dois pés, não sabiam se viveríamos na água, na terra ou voando. Muitas estrelas têm seus lugares brilhando muito acima das ondas, e talvez nunca tenham um templo para si, poderes desconhecidos e inacessíveis.

Das estrelas que brilham sobre o mar, a mais conhecida, com certeza, é Buriash. Para o poderoso altíssimo da justiça foi erguida uma torre, Céus Partidos (oficialmente, o Castelo Sagrado da Cerração), no meio do oceano, uma obra monumental que levou mais de um século e várias gerações. Com andares de bronze, andares de pedra e andares de ferro puro, foram necessárias novas técnicas de forja submarina e pelo menos um par de feitiços para colocar pedra sobre pedra.

Os astrônomos já identificaram vários outros altíssimos de grande poder, esquecidos sobre as águas. A monumental construção do Castelo Sagrado nunca poderia ser repetida nos dias de hoje. Uma obra como essa precisa da união dos povos, de irmandade entre regentes, de paz. Não primamos nestas áreas nos dias de hoje.

Nasceu há algumas horas neste navio uma criança. Estávamos sob Gauri, altíssimo regente da visão e do entendimento. Um adepto falou à mãe da criança sobre a Alma Mater de seu filho: era um anjo de onisciência, uma estrela do bem e da pureza, capaz de enxergar através das dificuldades e das ilusões. Uma criança fez um desenho do seu avantesma como um ciclope angélico e radiante que emanava luz.

Esperei ver resolução na face do recém-nascido, mas acho que será mais um a sofrer neste mundo injusto. Torço pra que encontre um lugar onde possa crescer com paz, e que nunca caia vítima das mentiras que ouvimos todos os dias.

Chamam essas crianças nascidas em navios de "filhos de canhão", porque geralmente, na pressa, os partos são feitos nas salas de artilharia, que costumam estar cheias de feno.

Pequeno canhão sob Gauri, espero que sua vida seja longa e radiante.

Transcrição do Tomo das Eras, XLVIII


Dias passaram e houve quem não tivesse temor
Quem pertencesse à noite, incólume ao Poder
Invulnerável ao julgamento, dias contados de existência
Sem dor
Sem consciência
Da noite, as crianças não podiam ser punidas.


Artigo: Batizando Águas

Parece que a maioria das pessoas não sabe explicar a diferença entre um oceano e um mar. Explico. Um oceano é necessariamente um pedaço de água enorme, e um mar é um pedaço de água relativamente grande, em contato com um oceano, sem forma requerida e apenas largo e movente o suficiente para não ser um rio. É subjetivo: sim. Mas tão claro quanto distinguir uma ilha de um continente.

Existem três oceanos em Natal: o Alvo, ao leste, que banha a costa leste de Faris, Odenheim e Rublo inteiras; o Boreal, a norte-oeste, que banha a costa norte de Faris, Ivoire e um pouco de Longinus; e, finalmente, o Infra, que banha o lado sul de Longinus e as cordilheiras cedarianas. Por acaso, é neste último que este barco está navegando.

O oceano Alvo é o mais plácido; seu solo também é o mais profundo, recoberto por profundas selvas submarinas. É o melhor oceano para a navegação e para as atividades extrativistas como a pesca e a colheita; sob o sol da manhã, durante alguns minutos em que as plantas liberam uma espécie de albumina na água, o oceano brilha com uma cor muito branca em alguns trechos, daí vindo seu nome.

O oceano Boreal, agitado e povoado por barreiras imensas de corais, navidorsos e conjurações agressivas, é um desafio constante para os planinautas e navegadores de Hevelius. Desde que o meteoro atingiu a baía que hoje tem seu nome, o oceano Boreal têm tido zonas de águas muito quentes, zonas de muita correnteza e projeção de pedras pelas ondas.

O oceano Infra tem sua maior parte congelada no sul setentrional de Natal. Conjurações maiores que os navidorsos às vezes são vistas aqui, muitas vezes enterradas sob séculos de gelo. A redoma deste lado divide sua matéria com uma torrente de gelo farpado. Muitas vezes, o movimento dos barcos atira grandes placas de gelo contra a redoma, produzindo um espetáculo branco de fumaça.

Passam-se dias sem luz.

Passam-se dias sem luz enquanto contornamos Rublo pela cordilheira sul de Cédara. Aqui quase não há sol, estamos praticamente num túnel de pedra seguindo inexoravelmente a oeste. Existem pelo menos cinco planinautas responsáveis neste barco e nenhum sequer parece ter cogitado a idéia de usarmos o Cinturão para alcançarmos Rublo com mais rapidez.

O Cinturão Externo, ou Cinturão de Maeve, ou simplesmente 'Cinturão' é uma faixa de ventos alísios imediatamente após a redoma que propulsiona tudo em seu caminho em sentido anti-horário ao redor de Natal. Quando os planinautas decidem que vale a pena passar o pescoço na redoma, o Cinturão pode ser usado para encurtar bastante as viagens. Durante as fases próximas à Lua dos Cetros, o Cinturão gira rápido o suficiente para permitir a uma boa capitânia fazer uma volta completa em Natal em menos de três dias.

Ou ao menos foi o que eu ouvi dizer.

Em Odenheim faz bastante frio, mas este lugar é insuportável. Imprensado entre o mar bravio e uma montanha escarpada e negra, tendo que proteger os ouvidos do vento, sentindo o barco sacolejar e debilmente seguir em frente, posso afirmar que, sem sombra de dúvida, já tive dias melhores. E como faz frio aqui. Não propriamente frio de temperatura, mas o vento glacial contra nós está me congelando os ossos. A única coisa que posso ver são filetes de luz contra a montanha negra. Gente? Aves? Cálciferes?

Muitas das pessoas junto a mim parecem rezar e pedir clemência a altíssimos que desconheço. Estamos há uma semana neste inferno escuro, mal-dormidos e mal-alimentados. Vamos ver como é o resto de Rublo. Começou bem mal.