Artigo: Os Cálciferes

Duzentos anos atrás, imagine. A feitiçaria não era proibida quase por hipocrisia: quase todo mundo sabia alguma coisa por trás dos panos que viria a ajudar em algum aperto. Imaginava-se que haveria compreensão divina por uma coisa tão pequena. A proibição voltou a acontecer quando caiu o meteoro.

O meteoro! O meteoro foi o maior acontecimento desde a fundação. O mais incrível é o quanto ele demorou, o quanto ele ficou olhando do céu o desespero de todos, descendo lento e infalível rumo ao solo de Natal.

Os astrônomos apontaram que cairia no mar. Grandes feitiços e orações foram feitas para segurá-lo nos ares, que só adiantaram para arrancar-lhe lascas que viriam, dias mais tarde, a cravar-se no chão em lugares inacreditáveis, como lanças eternas e marcas de lembrança.

Quando caiu, a água levantou metros no litoral, e por quase um dia inteiro, fumaça e vapor cobriram o céu. Os templos estavam lotados, todos se arrependendo de terem aprendido ou feito aquilo ou isso. A negra mancha líquida impressa na redoma parecia um soco e todos achavam que seriam soterrados no gás e na poeira.

Tudo terminou quando os primeiros corajosos puseram os pés para fora dos templos. O mundo ainda estava inteiro, mas os céus estremeciam como um aviso. Até hoje, na direção dos céus de Hevelius, o céu tem uma mancha escura. Uma semana depois, todos os países já haviam proibido constitucionalmente a feitiçaria; uma geração depois, ser feiticeiro era um pecado mortal. E duas ou três gerações depois, surgiram uma miríade de paladinos para retornar à caça-e-suicídio.

Uma centena de anos se passaram e as tempestades não se foram. Ivoire começou a construir máquinas que supostamente restaurariam a redoma, construtos imensos e resfolegantes que arrancavam forças do solo para enviar lá pra cima. O resultado foi que em meses não nascia quase nada mais no chão de Ivoire e o país ficou mais seco e quente, como se tivesse perdido força vital. As carcaças da maquinaria foram abandonadas em cemitérios e ferros-velhos (como é costume dos ivoreanos) e lá estão enterradas até hoje.

A segunda solução veio de Céus Partidos, naquela época alcançando as nuvens e vibrante com centenas de adeptos iniciando-se a cada ano.

Num ritual que levou três meses, uma única alma foi trazida de Além-Vis e guardada em uma orbe de vidro. Para ela, foi feita um corpo de luz, sedento. Solta no ar, ela flutuou por segundos antes de começar a voar, com velocidade para Longinus.

Testemunhas oculares reportaram que a alma, uma bolinha de fogo graciosa, entrara numa tempestade de vento feiticeira e se tornara um colossal gigante elemental antes de atirar-se para fora da redoma, levando consigo a fúria da tempestade, acalmando os ares.

O experimento foi considerado um sucesso incrível. A partir de uma segunda alminha arrastada foi solto outro pequeno ser, que desta vez partiu-se em sete para procurar outras energias.

Foram arrastadas algumas centenas de almas ao longo dos anos e até hoje elas mantém a redoma inteira quando nossos feiticeiros saem da linha (Maeve, perdão pela minha vulgaridade). Infelizmente, os cálciferes são muito vulneráveis ao ambiente e à hostilidade. Se absorvem um feitiço feito para matar, existem chances que o cálcifer resolva cumprir o destino da mágica antes de jogar-se para o infinito.

Parece que os cálciferes também são influenciados pela força da terra em si. No Belvedere, eles têm infestado as noites como vaga-lumes desorientados, engolindo ventos naturais e os expelindo, absorvendo eletricidade, tentando expulsar-se da redoma e não conseguindo. Calculo que um único feitiço que seja lançado neste lugar possa causar uma catástrofe monumental se os cálciferes decidirem competir pela maléfica energia.

Diferente das conjurações, os cálciferes aparentemente não são sencientes. Todas as tentativas de comunicar-se com um foram, até agora, infrutíferas. Se capturados em garrafas ou tonéis eles assumem aparências peculiares, como formas geométricas e curvas de luz. É uma prática perigosa, que envolve o risco do cálcifer arrebentar o vidro e se tornar, por alguns momentos, uma espiral assassina rodopiante de cacos afiados ou algo pior se houver qualquer energia da qual ele possa se alimentar por perto.

A saber, um cálcifer pode engolir energia de feitiçaria bruta, fogo, ventos fortes, eletricidade, areia, vidro, aço, magma e pólvora trazidas de Calibur, carvão e água muito quente; ele se torna imediatamente uma espécie de elemental de o que quer que ele tenha engolido, muitas vezes podendo moldar sua forma e evocar mais do elemento em sua posse.

Capturar cálciferes, apesar de proibido, é uma prática comum entre crianças de rua odenianas, que muitas vezes são seguidas pelo pequeno bichinho.

A partida.

Procurei por dias pelos portos ao longo do Barum e não descobri o navio prometido. Durante minha expedição, juntei-me a uma pequena caravana que tinha a mesma finalidade que eu. Todos estranharam que um senhor bem-vestido como eu estivesse abandonando tudo que tinha para ir trabalhar no campo. Olharam-me com um certo desprezo, como se eu estivesse querendo pegar também uma única parte da suposta melhor chance que eles teriam na vida.

Os sentimentos de desgosto para com minha pessoa duraram até que enfiei as mãos no bolso e paguei a vários vigias de posto para que nos avisassem urgentemente se vissem o navio passando. Rapidamente o localizamos, na verdade muito atrasado com relação ao que estava escrito na carta.

O S. S. Vindouro estava apinhado de gente. Alguns festejavam enquanto outros já choravam, despedindo-se da terra onde tentaram, e não conseguiram viver. Vi filhos se separando de pais, homens partindo para nunca mais verem suas amadas, crianças embarcando sozinhas e dervixes abandonando as armas e a obrigação para juntarem-se à expedição. Se houvesse algum governo organizado em Faris agora, isto seria motivo para guerra e retaliação. Na verdade, ainda acredito que este quase-sequestro em massa vá ter repercurssões em Glenária e Belgrade, repercussões ruins para Rublo.

Como um estudioso, eu estava interessado no sentimento das pessoas. Como um estudioso, minha responsabilidade era estar envolto naquele momento como qualquer um e possibilitar a qualquer um que viesse a ler meus escritos, sentir, ver, escutar o que está acontecendo agora.

O navio parte, rapidamente abandonando as fronteiras farisienses, e logo estamos em terras cedarianas, sempre navegando a sul.

As amplas margens do rio não permitem a eles enxergarem o que há atrás do horizonte.