Transcrição do Tomo das Eras, XLIX


Desfizeram-se entre as raízes e correram pela seiva
Cada movimento empurrou o mundo inteiro uma vez.

Desfizeram-se entre os torvelinhos e as folhas
Cada movimento empurrou o mundo inteiro outra vez.


Correram pelas águas e pela neve
Cada murmúrio soprou sobre o mundo inteiro por uma última vez.

Quatro vivas para o Oceano Alvo.

Posso dizer que estou contaminado por um daqueles detestáveis sentimentos de massa, tipo comoções e emoções de salvação e amor. A visão luminosa do Oceano Alvo depois de mais de uma semana daquele vento glacial me queimando os ossos foi uma coisa impressionante, quase divina. Para todos foi igual ou pior - o que tinha de gente chorando foi impressionante. Mais impressionante ainda foi o que festejaram depois. Tocaram violões no maior estilo farisiense, saltaram modinhas, eu... dancei um pouco com os caravaneiros também. Eu estava contaminado por um daqueles detestáveis sentimentos de massa.

Não foi ruim, no final das contas. Mas certamente não é o que escolásticos sérios como eu devem fazer todo dia. Acho que eu devo me permitir coisas dessas às vezes. Eu não mencionei que eu tinha bebido um pouco, também. Incrível o que essas pessoas conseguem carregar nesses sacos brancos de lona.

Em frente, para Rublo!

Leitura: O Almirantado de Hevelius

Eram tempos em que a República Livre de Faris não havia sido dominada, nem destruída. Francamente, ela mal havia sido construída; não importam o que dizem os papéis. Belgrade do Norte era um sonho para alguns. Calcedona era só o farol solitário olhando sobre o mar. Glenária já existia, e recebia às vezes um ou outro odeniano procurando paragens novas ou fugindo dos imperadores. Foi na mesma época em que o marquês Kachaturian pisou aqui pela primeira vez, exilado por Soren Meredith.

A baía de Velian era famosa entre os planinautas. Nem meteoros afundaram tantas capitânias promissoras quanto seus traiçoeiros corais, certos e letais como minas aquáticas. E ela era inevitável em muitas rotas. Bateram e afundaram tanto que dois malandrões instalaram um guincho lá.

Seus nomes eram Dea Luken e Sotiris de Asa Azul. Luken era um poeta desacreditado, recém-formado da Universidade de Lodis, que desistiu das letras porque acreditava que uma grande idéia como a sua podia ganhar uma vida melhor do que alguns livros. Abandonou tudo de seu passado para fazer sua viagem de negócios para a Baía de Velian. Sotiris era primo distante de Luken, um garoto esperto do campo. Desprezava livros e confiava na própria cabeça. Era bom de contas. Diz-se que sabia a tabuada completa até trinta.

O guincho, um dos primeiros de Faris, e com certeza era algo de dar medo, aquela torre de metal trançado contra a sombra da noite. A retirada do navio não era de graça. Como a batida quase sempre era feia e boa parte da mercadoria ia pro fundo do mar, Luken e Sotiris cobravam o que havia à mão. Díesel, timões, turbinas, esporões, estátuas, tudo tinha um valor. Eles revendiam mais caro para quem precisava e saíam com uma grana.

Havia quem dissesse que toda noite um dos dois tomava um trem, para depositar as cédulas em um banco em Belgrade. Havia quem dissesse que eles iam junto com a carga, pra poupar o dinheiro de passagem. Os garotos tinham espírito de empreendedores.

Houveram vários assaltos no Guincho de Velian, todos infrutíferos. A qualquer dado momento, só havia lá uns tratores, um ou outro barranco recém-escavado, vários planinautas acampados, e pilhas de tralha metálica. Os piratas, mais ou menos ousados, não levavam nada. Um ficou amigo de Sotiris e passou a trabalhar lá.

A sorte dos companheiros, porém, iria mudar. Quando eles começaram a se permitir noitadas mais longas, vieram os ivoreanos. Como diz o ditado, o chão que os ivoreanos pisam, vira merda. O Império Sagrado de Ivoire tinha interesse na madeira de Faris e exigiu ao conselho que dessem um jeito naquela rota, e por que não, naquele guincho. Ia rolar muito dinheiro, liberação, influxo de capital, era perfeito para que construíssem uma segunda Belgrade, para que dessem palacetes para mais umas duas dúzias de nobres. O conselho aprovou.

No dia seguinte, Luken, Sotiris, Madai – o pirata – e um séqüito de planinautas assistiu um trem descarregar, talvez, vinte trabalhadores. Dinamitaram os corais. Desmontaram o guincho sob protestos.

O Almirantado de Hevelius veio um mês depois quando chegaram alguns aristocratas cansados. No começo uma torre, mas a passagem dos navios e os impostos cobrados pelas passagens rendeu um castelinho e alamedas bonitas no centro da cidade. O barranco e o lugar aonde ficava o guincho ficaram desabitados da noite pro dia.

Sotiris era um garoto do interior, de uma das vilas sem estrela nas bases das montanhas de Aesir. Bem-nascido, tinha sua casa para voltar quando quisesse. E quis; pegou sua metade do dinheiro e nunca mais se ouviu falar dele.

Luken não tinha para onde voltar. Brigou com os pais, com a noiva, com a Deusa e o mundo por causa de seu sonho de metal trançado, tão rapidamente arruinado. Tinha metade de uma pequena fortuna em mãos e nenhuma perspectiva pela frente. Apesar da inesperada reprovação de Madai, montou um cassino luxuoso que foi à bancarrota mais rápido do que uma roleta poderia girar. Mandou tudo à merda e foi beber e jogar pelos bares da República. Sem Sotiris, era só ímpeto e idéia – lhe faltavam a racionalidade e o planejamento inteligente do amigo.

Morria de medo de morrer e ter que justificar para a Deusa ter ficado torcendo pra tantos barcos afundarem.

Leitura: Belgrade do Norte

Meu amigo de longa data, Dr. Natanael, médico real de Odenheim e um conjurado de Outros Mundos, há muito escreveu esta pequena história sobre sua aventura diplomática em Belgrade do Norte, há quase quarenta anos atrás. Vale ler.

"Em tempo: fui conjurado, não sou daqui. Se você me perguntasse há precisamente seis anos atrás, eu diria que toda essa história de Maeve, altíssimos e povos de luz, fogo e terra é completamente nova para mim. O mais interessante é que pouco a pouco esqueço da minha existência anterior e parece enraizada no meu coração a idéia de que nasci sob uma estrela, em um país em que neva durante a maior parte do ano. Poderia discorrer longamente sobre o que aconteceu comigo, e como aconteceu comigo, mas isso talvez seja assunto para outra hora.

Alguns anos após minha chegada, eu havia angariado uma soma grande em rúpias como médico no Palácio Oceânico, em Odenheim. Resolvi viajar o mundo de trem, talvez cansado de ouvir as pessoas falarem sobre coisas que eu não conhecia. Conheci os lagos mais belos de Cédara, e os lagos mais serenos de Longinus. Conheci as savanas e cheguei a ver um garuda de perto em Ivoire. Vi as máquinas rebumbando no Almirantado de Hevelius e conheci o deslumbre de Belgrade, a metrópole. Encontrei pessoas que conhecia de outras paragens (na verdade, Outros Mundos) e, por força da amizade, em Belgrade fiquei, ao menos por um tempo.

Minha presença não demorou para ser notada. Como médico real de Odenheim, fui chamado como convidado ilustre para assistir à inauguração do chamado “Sonho Farisiense”: Belgrade do Norte e suas torres de ouro. Para tanto, pediram-me que me hospedasse e esperasse duas semanas no Chateau Leonius, o melhor hotel da cidade. Enviei um telegrama ao agora saudoso Rei Dálfon Palas, Eterno e Justo, avisando de minha demora. Em resposta, um pedido para que ficasse e representasse Odenheim diplomaticamente na inauguração. Fiquei.

Na abóbada do salão principal do hotel, havia uma gigantesca pintura a óleo das torres de Belgrade do Norte, como eram, seriam, ou deveriam ser. Sobre várias mesas compravam-se e vendiam-se terras em Belgrade do Norte, homens ricos pensando em filhos e netos. E todo dia, da janela do quinto andar do hotel, eu via saindo as caravanas com tudo que os trabalhadores precisavam para lá. Foram duas semanas em que tudo que se falava tinha relação com Belgrade do Norte. Aproveitei para permanecer mais tempo com meus amigos, talvez a única coisa que me ligasse ainda às minhas origens. Entretanto, findaram as duas semanas e meu trem partiria para o “Sonho Farisiense”.

Despedi-me, prometendo voltar a encontrá-los. As luas mostravam o caminho por entre árvores e cascatas, negras na noite. Vi o Hierofante Ludgast impaciente, vi os ministros ivoreanos levando o pequeno rei Azi, vi a estupenda, a belíssima Natasa Musa sendo cantada pelo Kyriakos, vi Iamni de Veruna, Rudelger de Biblos, vi a jovem Ifalna, linda filha de Dálfon, vi astrônomos cedarianos discutindo com adeptos odenianos, entre outras visões não menos admiráveis, tudo dentro de um único trem. Lembro que imaginei o tamanho da perda que Natal teria se um garuda subitamente abalroasse aquela máquina de ferro. Hoje sei que não existem mais garudas em Faris, mas no dia posso jurar que tive receio.

Belgrade do Norte, o Sonho Farisiense.

A uma hora e meia de trem de Belgrade.

Uma decepção. Olhei pra trás e vi gente esfregando os olhos. Nossa anfitriã, Marquesa Isolda, estava à beira de chorar. A nata dos reinos estuporada diante de um colossal buraco no chão, com andaimes aqui e ali. Fomos recebidos por uma comitiva encabulada de engenheiros com capacetes de lanterna. Isolda parecia querer se atirar no buraco. Eles garantiram a ela que dali a mais duas semanas o projeto estaria pronto, e ela olhou para nós todos, com os olhos marejados de lágrimas.

Suponho que eu não fosse, ao menos no momento, tão importante para o Palácio Oceânico. O Rei Dálfon não somente permitiu, como também insistiu para que eu ficasse mais duas semanas e visse Belgrade do Norte. Fui instruído, também, a acompanhar a jovem Ifalna. Alguns astrônomos também ficaram, e também alguns adeptos. Mas todos os ivoreanos, à notável exceção da Madame Natasa, voltaram para seu império.

A Marquesa Isolda ausentou-se completamentre do Chateau Leonius durante as duas semanas seguintes. Fui a teatros, bibliotecas, e conferenciei um tanto mais com meus velhos conhecidos. Apresentei a jovem Ifalna a alguns deles e mostrei a cidade a ela. Acredito que ela tinha quinze anos na época.

Era o penúltimo dia e jantávamos na sala de conferência do Leonius quando Isolda irrompeu pelas portas, com ar cansado e triunfante. Dirigiu-nos um olhar de aprovação, suspirou e, sem palavras, subiu as escadas para dormir o sono sem sonhos dos mártires.

O trem partiu com muito menos animação do que o anterior, um dia antes do previsto. Odenianos, só éramos “eu”, Ifalna e dois adeptos. A jovem princesa adormeceu no banco do trem, a cabeça jogada para trás, espalhando os cabelos muito vermelhos sobre o veludo verde-escuro dos bancos. Viria a ser uma mulher linda, pensei. Hoje não tenho vergonha de dizê-lo a ela.

Desembarcamos e era quase meia-noite. Vimos de longe a cidade toda iluminada. E desta vez, foi fantástico. Havia música, dançarinas com plumas, grandes letreiros luminosos, e realmente haviam torres de ouro, cassinos, palacetes. Um picadeiro ao ar livre no centro da cidade, e um espetáculo de balé com orquestra para receber-nos. A melhor hospedagem que já tive o prazer de desfrutar, a melhor comida, pensei em voltar à essa cidade três vezes ao ano, quatro talvez. Ifalna lutava para manter-se acordada apesar da música alta, e tentava prestar atenção em tudo. Minhas palavras não podem descrever o momento e a beleza que a cidade estava.

Nos próximos dias, a rotina se repetiu. A música não parava por um segundo sequer. Guitarras elétricas, orquestras sinfônicas, o tal do jazz nas esquinas, os concertos, tantos concertos. Acho que havia pelo menos duas companhias encenando cada peça que já foi escrita desde o início dos tempos em Natal, todo dia. Uma fábula. Mas claro, depois de três dias me senti completamente exausto e decidi voltar, independente das ordens de Dálfon.

Deixei uma carta de parabéns para Isolda e desejei-lhe “sucesso absoluto e eterno”. Se me lembro bem, foram essas mesmo as palavras que usei. A Princesa Ifalna reclamou um pouco de ir embora, mas no fundo, também estava com saudades de Odenheim, depois de um mês inteiro longe de casa. "

Artigo: As Cordilheiras de Turim

Antigamente, nos tempos em que Odenheim ocupava as duas ilhas, Nelbiand e Ayanan, o estreito de Rix dividia as duas ilhas. Hoje, os nomes das ilhas caíram em desuso, já que Ayanan inteira pertence à República de Rublo.

As Cordilheiras de Turim tinha caminhos internos usados pelos viajantes que não usavam barcos para cruzar as distâncias entre Lodis e Veruna. Nos tempos do imperador Kaiser Meredith, muitos viajantes estavam sendo pegos de surpresa por emboscadas preparadas pelos mantídeos escuros, quase impossíveis de matar, ferozes e fortíssimos.

Kaiser então ordenou a construção de uma grande passarela de pedra-sabão ladeando a cordilheira inteira e descendo na cidade de Terminus, a primeira que hoje é território de Rublo. Bandeiras vermelhas e archotes marcam o caminho dos viajantes sobre a pedra nua.

A fulgurância do céu nos horizontes próximos ao mar faz auroras boreais durante a Lua dos Cetros. Esse período coincide com o maior tráfego do ano de viajantes e turistas na passarela, que ficou conhecida como "Passo das Visões". Em Terminus, fotógrafos e pintores especializaram-se em conseguir as melhores figuras e gravá-las pra sempre com fotografias e tintas.

As nuvens correm rápido nos céus de Rublo; os ventos de altitude no país são os mais fortes de Natal. As cordilheiras páram esses ventos, contudo, deixando o ar no estreito de Rix relativamente parado e os céus quase completamente limpos. Nas pedras nuas e lisas do estreito, por vezes o clima fica até um pouco abafado ao mesmo tempo que se vêem os picos azulados e nevados do norte de Oden.

Pouca ou nenhuma vegetação cresce no estreito; apesar disso, vez ou outra são avistados celados, ainda em estado selvagem, fugitivos dos cativeiros reais em Bialt. Esses celados passam os dias andando sobre as pedras atrás de comida e acabam se tornando rápidos e resistentes, apesar de difíceis de domesticar.

Artigo: Mantídeos

O mantídeo vermelho belvederiano, chamado nos círculos acadêmicos de Mantis vulgaris, é um parente gigantesco e perigosíssimo dos louvadores terrestres comuns. Territorial e perigoso, anda em bandos de quatro ou cinco e é onívoro, se alimentando principalmente de serretes (que ele captura enquanto mergulham) e algumas variedades específicas de flores. Coberto por uma carapaça densa vermelha, é um inseto gigantesco com quatro patas em forma de foices assassinas. Ele anda ereto sob as patas inferiores, e pode atingir grandes velocidades locomovendo-se sobre as seis patas.

Grande parte da cultura dervixe envolve os mantídeos. O trinado de suas patas emite um som musical que afasta os serretes; por causa disso, os dervixes cunharam flautas de osso com três furos que, alternados rapidamente, produzem a seqüência de três sons agudos, idêntica ao trinado do mantídeo.

Além disso, os dervixes dizem que um mantídeo enfurecido ataca e se defende exatamente como quatro espadachins humanos. Eles muitas vezes mantém mantídeos cativos com as patas desafiadas e os provocam com pólvoras aromáticas que eles odeiam para praticar.

O mantídeo que habita as áreas subterrâneas abafadas no Estreito de Rix é maior e mais escuro que o mantídeo belvederiano. Seu nome científico é mantis turinensis, por causa de sua principal habitação, as Cordilheiras de Turim. Ele possui apenas duas patas adaptadas para a sobrevivência sob a terra. Eles secretam uma espécie de saliva que endurece rápido e se solidifica. Com essa saliva eles juntam pedaços grandes de rocha, que usam para empurrar sobre qualquer coisa maior que eles que venham a invadir seu território.