Artigo: A Universidade Roch de Karaouine

Lorde Roch foi um mestre celestial (um adepto e astrônomo) devoto de Karaouine que, depois de muito andar pelos templos do mundo e aprender com os povos e pelas suas próprias observações, escreveu um grande tomo sobre física, matemática e astronomia que denominou Alkaraouine, que ficou conhecido como "O Livro de Todas as Ciências". Cinco anos após sua morte, o Imperador Remus II mandou que fosse erguida, junto ao seu túmulo no templo do altíssimo que seguiu durante toda a vida, uma universidade que levasse seu nome e onde se estudassem as ciências que o estudioso tanto amava.

Galen Melville Roch viveu em tempos de paz, mas tempos duros, quando o frio extremo e a falta de madeira para aquecer as forjas e as casas castigavam Odenheim. Nasceu pobre nas periferias de Lodis. Seus pais passavam o dia fora, trabalhando e afora a escola, ele não tinha mais o que fazer. Naquela época, os meninos da idade dele interessavam-se em caçadas, poesia, livros de romance e o cultivo de flores (que na época era uma espécie de febre quando descobriram o pólen de manchestra). Ele espreitava tipógrafos, roubava jornais para ler escondido (ler jornais era impensável para meninos), e fazia pequenos serviços na Universidade Central de Lodis para poder ouvir, atrás de portas, as lições de matemática que eram dadas aos entediados e desinteressados aristocratas.

Quando fez quinze anos, Galen já tinha a simpatia de alguns professores na Central por sua perspicácia e por suas respostas rápidas. Um deles, Sr. Merril, decidiu levá-lo em uma excursão junto com seus alunos. Galen pôs seu melhor chapéu e um colete surrado que seu pai havia lhe dado, e foi. Visitaram o templo de Karaouine. Galen não ficou muito impressionado - achava que o altíssimo dos números e da exatidão estava mal representado por um templo que não tirava ninguém das ruas para ensinar coisa alguma.

Quando olhou para os céus do lado de fora, ele despertou para uma consciência nova, estranha, e analítica que lhe tirou a paz para o resto da sua vida. Virou o rosto uma última vez para o templo e voltou com os alunos de Merril. Era uma maldição. Olhava para qualquer coisa e sua cabeça começava a processar números e hipóteses. Por fim, descobriu que podia contar imediatamente e com precisão absoluta qualquer quantidade que pudesse enxergar.

Merril ficou fascinado com a nova habilidade de Galen, que contou a todos o que tinha pensado do templo e da dor que havia sentido quando saiu. Os ministros da época imediatamente destinaram fundos à ampliação da mandala de Karaouin temendo que o altíssimo estivesse insultado pela forma de seu templo. O poder de Galen foi usado várias vezes para divertir aristocratas, mas o mais importante: Merril lhe conseguiu uma bolsa para a Central e ele foi, por muito tempo, o recorde do estudante mais jovem que ingressou na faculdade, com quinze anos.

(esse recorde foi batido por Lorde Zurich de Reinfeld em 613 D.F., que ingressou na Central com quatorze anos para cursar teologia e filosofia. Odeio prodígios.)

A escalada acadêmica de Galen foi rápida após este fato. Diziam que seu intelecto era injusto porque não se dedicava como os outros e ele foi alvo de muitos truques cruéis e pequenas traições durante sua formação. Não teve amigos e nunca pôde confiar em ninguém. Seu benfeitor, o prof. Merril, morreu pouco depois de lhe conseguir a bolsa levando consigo a última esperança que Galen tinha na humanidade.

Sem ter criado laços, Galen viajou como investigador real. Interessou-se por astronomia por quase vinte anos e teve uma infusão da terra tardia aos quarenta, tornando-se um adepto misticamente fraco, porém dedicado, de Karaouine. Era um gênio científico e, no comando de uma pequena comitiva de investigadores reais, mapeou um grande número de estrelas em além-éter.

Escreveu o livro aos setenta anos, falando de ciências junto com relatos tristes de suas experiências pessoais. Morreu sozinho em Veruna em 366 D.F., com 89 anos de idade, vitimado pela pneumonia.

Artigo: A Cidade de Gradec

A noroeste de Vercel, Gradec é uma quieta cidade de porte médio da costa oeste de Oden. Seu cartão-postal é Hildesheim, um castelo de pedra ao redor do qual a cidade foi construída. Antigamente a moradia de nobres da época chanteliana, hoje o castelo é usado como uma espécie de hall da cidade, que vive dos seus herbários e de duas grandes forjas rivais. Neva pouco em Gradec, apesar de fazer muito frio. O povo supõe que Vercel chame toda a neve para si e agradece a Maeve por isso, pois nenhuma erva gosta de neve.

Gradec é formada por três distritos: Landes, Schauspiel e Graz, sendo Landes o mais externo, Schauspiel o distrito do castelo, e Graz um distrito mais ao sul, que foi recentemente ocupado por cavaleiros bandidos.

Landes é o distrito comercial de Gradec, tendo vários quarteirões diariamente abertos com lojas de perfumistas, vendedores de ervas, comerciantes de espadas, antiquários e marcenarias. Frente a frente na calçada principal de Landes ficam Murinsel e Kunsthaus, grandes forjas especializadas em motores com corpos feitos de ferro. Desde o início do reinado de Meredith, as duas forjas competem pelo domínio da produção e venda de carcaças para motores para a capital.

Em Schauspiel ficam a maior parte dos herbários, grandes grades de ferro onde são plantadas trepadeiras e ervas medicinais vendidas para os alquimistas de outras cidades. A constituição de ferro das grades é essencial: as ervas lentamente consomem o ferro para crescerem assustadoramente rápido. Muitas vezes, em uma semana, as trepadeiras recém-plantadas atingem o topo das grades e precisam ser colhidas. Anualmente todas as grades são trocadas em uma celebração que dura duas noites.

Graz foi um distrito residencial construído em píeres sobre um lago, sempre imerso em névoas. As casas lá eram feitas de tijolos e tinham janelas de vidro colorido, geralmente verde ou vermelho. Com a industrialização, a própria população abandonou suas casas para viver mais próximos da cidade. Quando a área começou a ser ocupada por cavaleiros bandidos, a aristocracia da cidade decidiu não interferir por temer uma retaliação, mas imediatamente começou a passar informações para a capital.

A torre do relógio de Hildesheim abriga a capela para Spire, um altíssimo quase inexplorado cujos domínios confluem em misticismos arcanos complicados. Seus adeptos são capazes de invocar torrentes de frio, aromas que afetam milagres, refletir e retribuir mágicas e cunhar incensos de efeito moral.

Artigo: Nínives

Os nínives, Nineveh argania, são pequenos roedores brancos de pelos longos e olhos perspicazes. Eles se caracterizam por suas longas caudas ornadas com uma única pluma na ponta, que exibe cores como magenta escuro, verde e negro dependendo da região de onde o níneve provêm. Alimentam-se de frutas, as quais conseguem escalando as árvores com agilidade. O nínive vive bem nos climas frios de Rublo, mas migra eventualmente para o sul em tempos invernais, quando a temperatura fica baixa demais para as frutas e, conseqüentemente, pra ele.

Os parentes maiores dos nínives, os ulmos, Nineveh ulmus, vivem nas árvores maiores que crescem em climas temperados como os de Cédara e sul de Faris. De apetite voraz, com a eventual destruição de seus habitats naturais para a construção de cidades, são forçados a se tornarem uma espécie de salteadores urbanos. Os ulmos são escuros, de coloração marrom ou cinzenta (sempre cinza após saírem em bando de uma chaminé para o terror do dono da casa), e suas plumas normalmente são pretas ou cinzentas. Seus dentes são muito mais desenvolvidos do que os de seus primos menores, e eles atacam despensas e armazéns em bando. Se interessam unicamente por comida mas têm um hábito peculiar de seqüestrar itens que julgam valiosos. É sabido que quando uma 'oferenda' de nozes e frutas é feita aos ulmos, sendo deixada no mesmo lugar em que o item foi roubado, eles devolvem o item seqüestrado ao seu dono e abandonam o lugar para sempre.

Artigo: A Acácia Branca de Rublo

Existe uma espécie de árvore predominante nesse lugar. Ela se chama acácia branca, canan ou longas-folhas, como é conhecida em Cédara. É uma árvore alta e espinhenta que dá as flores mais brancas que eu já vi. Contra a neve, a flor ganha por pouco na brancura por mais incrível que isso possa parecer. Dentro das flores há uma espécie de suco transparente e grosso, dulcíssimo e semelhante em gosto à baunilha, que pode ser tomado com leite ou usado em concoções alquímicas para deixá-las tragáveis. Se não crescessem também em Cédara, os alquimistas de lá estariam falidos porque ninguém conseguiria beber aquelas químicas brabas sem botar tudo pra fora depois.

Costumava andar de bicicleta entre essas árvores. Hoje eu vejo que eu corria um belo risco de bater nas raízes e me estoporar no chão. Quando se é jovem, parece que alguns problemas simplesmente não existem. Hoje em dia eu não conseguiria sequer me equilibrar numa bicicleta... quando era jovem, eu andava de bicicleta, brigava e esgrimia, tudo muito bem. E pensar que me tornei o que me tornei, um senhor grande e sorridente devotado aos meus escritos.

Hoje, Viola colheu algumas destas flores e as secou para fazer uma guirlanda como as que se fazem em Faris, o país dela. Andou até bem longe de nosso assentamento, parecendo prestar uma homenagem ao ex-marido, talvez a última delas. Desconfio que Viola olha para mim enquanto medito e escrevo minhas memórias. Este velho senhor ainda tem seu encanto!

Artigo: A Flora

Imediatamente depois dos anjos, Maeve fez os mundos para que vissem, e permeou-o com seres de iluminação e serenidade que sofreriam junto com os povos ou floresceriam com eles. Estes seres assumiram formas naturais e se tornaram raízes que se cravaram no solo de todos os universos, tornando-se galhos, casca, frutas, grama, grandes árvores, troncos, flores e tudo o mais: flora.

Nos círculos escolásticos elas são chamadas de 'seres de vazio'. Suas consciências formam o espírito dos mundos e elas refletem, sofrendo ou florescendo, as ações da civilização. A flora é grandiosa quando os homens a fazem assim, e triste e mirrada quando decepcionamos nossos propósitos. Os longinianos descobriram isto antes de todos nós. Maeve para eles também é uma árvore, imutável e eterna.

Não existem conjurações em forma vegetal, ao contrário do que se acredita. Também não existem árvores que se movem, que pensam, odeiam e assombram viajantes. A natureza não se vinga de nós quando a insultamos; ela sofre conosco, e nos faz sofrer completamente sem esta intenção. Ela não precisa sentir vingança para que sejamos punidos. Ela está em nós e nós a somos.

Primeiros dias.

Nos organizamos da seguinte maneira:

As crianças colhem as orquídeas boas. Boas são as que apresentam as cores púrpura e verde simultâneas, ou as orquídeas azuis brilhantes. As outras ainda têm de maturar.

As moças preparam os buquês com esmero.

Os homens (somos em maior número) cuidam das ervas daninhas e mantém as orquídeas saudáveis, as regando quando necessário e as protegendo do sol excessivo trazendo toldos.

Na primeira semana conseguimos carregar dois carros razoavelmente cheios com os buquês. O aroma parece ter agarrado na minha pele e cabelos e imagino que nunca mais vai me abandonar. Tornei-me destro o suficiente com uma tesoura para não cortar acidentalemente as orquídeas durante minhas distraídas elucubrações.

Vimos o adepto veruniano passando ao longe duas vezes neste tempo. Ele usa um robe castanho e um grande chapéu que torna a sua silhueta inconfundível no morno sol da tarde. Anda despreocupado com a certeza que nada requerirá sua ação imediata, ainda que sua presença a todos tranquilize. Dizem que ele é capaz de invocar o avantesma de Idun e curar as feridas mais graves fazendo seu altíssimo derramar uma lágrima, e dizem que suas palavras são serenas como a noite mais cálida. Nunca tivemos oportunidade de falar a ele apesar da maioria dos aldeões querer suas bênçãos. Ele sempre passa longe o suficiente para que nós não nos aproximemos, e perto o suficiente para sabermos que está nos protegendo.

Outra personagem que conheci foi Viola, uma viúva, mãe de cinco crianças adoráveis. Ela faz buquês belos como si mesma, os enfeitando com flores silvestres que colhe por conta própria do chão. Foi a última a subir no carro para Lothair e voltou com histórias de uma cidade de muros esculpidos com grandes bandeiras azuis bem escuras, uma cidade nova e magnífica.

No próximo carro, eu serei quem irá para Lothair acompanhar o curso dos buquês. Também pretendo falar com nosso guardião adepto, e da próxima vez ele não me escapa.

Leitura: A História de Hepzibah, parte 3

Hepzibah seguiu a direção em que Nila nascia. Ele não esperava prosseguir sem ter de lutar por muito tempo e estava certo. Felizmente havia agarrado duas boas cimitarras em sua saída expedita e considerava-se pronto para fugir ou morrer lutando. Não seria capturado novamente, não se pudesse impedir, não se sua própria espada pudesse alcançar seu cinerário coração antes que ele fosse preso ou nocauteado. Tinha aquilo como um mantra constante na mente.

E muitos sóis viram seus passos antes que finalmente desfalecesse de cansaço. Andou eras de mente sob os céus dourados de Ivoire, cortando caminho por dentro de matagais altos à golpes com as lâminas, mas por fim deitou-se sem que mais pudesse prosseguir. O poder cobrava seu tributo e ele se sentia vazio de energias, drenado.

Seguida à sua força, sua visão e consciência se esvaíram num sono letárgico que durou dias. Despertou na sombra da noite e com frio. Agora...

Não conseguiu se levantar.

Seus músculos eram pedra. Estava permeado com uma maldição. Capturado dentro de seu próprio corpo. Hepzibah fechou os olhos para gritar contra as estrelas e contra seu destino. O som que urgia era mudo, um silvo inaudível, e ele chorou marcando o rosto com lágrimas. A aura vermelha e verde ergueu chamas espirituais de metros sobre ele. Aquele poder não era seu. Sinalizava sua carcaça. Em minutos chegaram, cavalgando celados.

Hepzibah desejou estar morto, desejou muito estar morto. As cimitarras, inúteis, não serviriam seu propósito agora. Seu corpo foi recolhido sem resistência e em algum tempo, sua consciência foi se recolhendo à escuridão na cavalgada noturna que o levava de volta para seu inferno.