Leitura: Os Idos de Rublo

Dezoito anos após sua proclamação de independência, elevações tenebrosas nos impostos e pequenos conflitos localizados entre as ordens de cavalaria verunianas e milícias mercenárias contratadas por aristocratas, Lady Iamni declarou a República Nova de Rublo um país comunista. A resistência por parte dos nobres foi imediata e terrível, e durante três noites, Rublo conheceu o caos na forma de ataques localizados e terrorismo. A própria Lady Iamni foi atacada em sua residência em Veruna e precisou ser hospitalizada. Maynard, homem de confiança de Iamni e um adepto pródigo, retribuiu o ataque a Iamni assassinando, com um sortilégio vermelho, Agilard Indeever, um dos líderes do movimento de resistência, meio-irmão do Marquês Wieland Indeever. Em resposta aos protestos e como retratação a Odenheim pela morte de Agilard Indeever, Iamni deu permissão aos aristocratas para que abandonassem Rublo antes da Grande Reforma e da distribuição dos bens. Muitos mudaram-se para Cédara e Odenheim. No final, a promessa de tantos anos atrás se cumpriu.

O Rei Meredith, ao contrário do esperado, não interferiu no processo. Apesar das tensões e de alguns ataques sanguinários na fronteira dos dois países que partiram de iniciativas não autorizadas tomadas por Lorde Fabian, capitão da brigada dos Leões Brancos, Meredith tratou Rublo com relativa indiferença, inclusive permitindo que alguns acordos fossem fechados pelos importantes dos dois lados.

Rublo almejava a auto-suficiência, e a teve em poucos anos, abençoada pelo clima e pela disposição do povo para a agricultura, que se tornou a atividade primária de renda em todo o país. Outros cargos atribuídos ao povo foram os de guardiões, andarilhos, mensageiros, comandantes de barcos, escritores e batedores. Rublo caminhava para uma utopia de paz e trabalho. O excedente em sua produção, ou seja, o que não era consumido imediatamente, para não criar esperanças de escambos no povo, era imediatamente confiscado e doado à famílias carentes em Faris. Junto vinha o convite de partir para Rublo e trabalhar nas lavouras, uma vida simples com recompensas simples. Funcionou para muita gente.

Em 728 D.F., foi eleito regente Terrance Valegris, um homem querido por seus amigos e um trabalhador incansável. Determinado a seguir o exemplo de Maynard e nunca deixar o ideal cair, Terrance queria dar conforto e qualidade de vida ao seu povo. Enquanto crescia ele viu muitos talentos sendo desperiçados no trabalho, músicos, idealistas, poetas sendo impedidos de fazer o que queriam e obrigados a trabalhar junto com todos. Ele queria permitir às pessoas trabalhar menos, para que pudessem perseguir mais seus próprios talentos, ler, aprender, descobrir coisas novas.

Em conselho, ele conseguiu autorização dos patriarcas de quase todas as regiões para vender o excedente agrícola para Cédara e começar a investir em pesquisa, fertilizantes, máquinas simples e mão-de-obra estrangeira contratada. Foi a primeira vez que Rublo teve algum contato oficial pacífico com o mundo externo (fora transmissões piratas de rádio) depois de 11 anos da declaração de portas-fechadas feita por Iamni. Terrance Valegris entrou num navio pela primeira vez na vida para se encontrar com os diplomatas cedarianos e negociar os preços.

Sentiu-se entre os lobos, encurralado por boas-maneiras e títulos. Era um homem muito simples e não tinha roupas para vestir além das que usava normalmente. Os diplomatas cedarianos inicialmente tomaram-no por um empregado. Viera sozinho, assim como voltou, com a cabeça cheia de promessas. Os cedarianos prometeram máquinas maravilhosas e compostos alquímicos que permitiriam a uma única lavoura de algumas quadras alimentar várias famílias. Todos eles conheciam muito mais de agronomia do que o próprio Terrance. Ele fechou um acordo de que entregaria cinco navios carregados de produtos agrícolas todo dia (que era um pouco menos que o excedente calculado por eles na última recontagem).

As famílias carentes de Faris teriam de esperar: o conforto que o povo de Rublo merecia viria primeiro. Terrance soube que Cédara parou de importar ervas de Longinus e verduras do sul de Faris, sendo que o fim dos negócios com Longinus quase significou tiroteio contra os kishis. Soube também que boa parte de Cédara passaria a depender dos produtos agrícolas rublenses.

Tudo corria maravilhosamente bem. Os compostos de fertilidade alquímica cedarianos, pós que vinham em grandes sacos e que foram espalhados sobre todas as lavouras, funcionavam maravilhas. No quinto mês e junto com a chegada de algumas máquinas de arado, Rublo pôde novamente voltar a doar excedentes para Faris. Terrance não poderia estar mais feliz pelo que tinha feito pelo seu povo. A jornada de trabalho nacional havia baixado de nove para sete horas diárias, depois novamente para seis e, nesse quinto mês, cinco horas com a chegada das grandes máquinas de arar.

Terrance viajou uma segunda vez para Cédara, para renegociar a quantidade de navios com produtos: desta vez fechou o acordo em doze navios, mantendo um carregamento especialmente para ser doado para Faris. Era uma realização. Novamente, Terrance soube que Cédara estava quebrando outros acordos com Ivoire, Longinus e Faris, para dar preferência aos produtos de Rublo.

Um inverno mais rigoroso que o normal trouxe alguns dias de geada sobre todo o território e os cedarianos foram muito compreensivos, mandando mais fertilizantes alquímicos de ótima qualidade.

Quando terminou a geada, Terrance viu quase todas as lavouras enregeladas. A terra estava anormalmente crestada, como se estivesse sob toneladas de gelo. Os navios cedarianos vieram recolher os produtos e encontraram os portos vazios. Pressões diplomáticas levaram Terrance a pedir ao povo que levassem parte dos suprimentos de consumo interno aos portos, bem como toda a reserva, e houve escassez de alimentos pela primeira vez na história de Rublo após a independência.

Os aldeões descobriram que o solo havia se congelado em boa parte de Rublo, várias braças para dentro da terra. Era inútil continuar tentando cultivar ali.

No mês seguinte foi a mesma coisa. As reservas haviam ido, e agora as pessoas estavam tendo que consumir menos. Os barcos não voltaram cheios. Como resposta, Cédara não mandou o carregamento de fertilizantes nem as novas máquinas que ajudariam os aldeões com o problema do congelamento do solo.

Já havia parado de gear há muito.

Leitura: A História de Hepzibah, parte 1

Hepzibah era um meio-djin que vivia incógnito no Monte Marena, em Ivoire. As centenas de anos de sua existência lhe tomaram as memórias de seus pais e das circunstâncias de seu nascimento. Sabia de suas fraquezas e que tinha vindo a um mundo que pertencia aos humas, não a ele. Sabia, também, que a visão de seu rosto despertava o terror nos pardos ivoreanos, quisesse ele ou não. Hepzibah tinha força em seu sangue djin, e era muito maior do que as pessoas normais, diferente da maioria dos meio-djins que era fraca e de baixa estatura.

Hepzibah odiava viver como um animal acuado, mas não conhecia escolhas. Permitia-se abandonar seu covil apenas nas noites mais escuras para tomar ar puro. Muitas vezes ele sentiu que estava sendo observado, e muitas vezes ele foi observado sem perceber nada. Sem que soubesse, as pessoas dos povoados próximos começaram a falar sobre um fantasma vermelho que vagava no Monte Marena.

Uma noite foi acordado por um estrondo. Seu covil fora invadido por adeptos ivoreanos em grandes números. Ele sentira o impulso de matá-los com as garras, mas ao ver suas expressões de terror, procurou acalmar-se e falar a eles. Os ivoreanos ouviram grunhidos e palavras rasgadas na língua profana dos djins. A face do inimigo parecia se retorcer de ódio. Os soldados começaram a disparar no djin, que berrava por clemência enquanto o fogo do seu próprio sangue saía para consumir seu corpo. Os ivoreanos ouviam só ódio, só esperavam ouvir ódio e só ouviram ódio. Hepzibah caiu inconsciente e morreria em poucos minutos.

Os ivoreanos não permitiram que ele morresse, no entanto. Levaram-no para Biblos onde ele passou por todo tipo de crueldade, exposição pública e ridículo. Sangrou fogo milhares de vezes diante de observadores entretidos. Um dia, furaram seus dois olhos. Hepzibah nunca mais viu as faces de seus captores mas sentia seus toques podres, socos e golpes de espada aos quais seguiam jorros das chamas de suas veias. Vivia sendo carregado dentro de uma cela, amarrado e algemado. Tentou encerrar sua própria vida muitas vezes, todas sem sucesso.

Um dia, ele pediu a Maeve para que o levasse, que o sanasse daquela existência eterna de sofrimento. Cego, aleijado e inútil, ele não poderia continuar nem que escapasse.

No dia seguinte, ele ouviu que os ivoreanos estavam pretendendo se livrar dele, porque um novo ministro achava que a exibição pública daquelas crueldades estava manchando a reputação das cidades. Lhe prepararam um último número. Parecia que sempre se perguntavam como um garuda comeria um meio-djin pegando fogo.

Uma arena lotada para sua despedida. Hepzibah foi largado no chão de areia áspera e a ave foi libertada. Uma grade protegia os observadores encantados com o espetáculo que viria. Os ivoreanos pareciam se deliciar com a idéia de um representante do segundo povo sendo subjugado por eles. Tomavam aquilo como uma vitória da civilização huma. Não eram adeptos de combates de arena daquele tipo, mas era certamente um caso especial. Uma execução de um criminoso de luxo, cujo único crime foi existir. Grande parte da nata da aristocracia ivoreana estava reunida no dia, inclusive algumas crianças que imploravam aos seus pais para ir embora.

Feixes de nuvens negras começaram a aparecer no céu azul-escuro, junto com uma calmaria que vinha do leste com suas luzes mudas. Hepzibah, com grande esforço, põs-se de pé, aterrorizando o público com seus olhos inexistentes em brasa.

"Faça com que seja rápido, Maeve."

Um pouco de pureza.

Despertamos com sinos educados do lado de fora. A maioria das pessoas saiu com pressa, temendo estarem atrasadas ou descumprindo alguma regra, mas não foi este ao caso. Um encarregado da República, que parecia estar cumprindo aquele ofício durante toda sua vida, vestindo um gibão vermelho e um chapéu com uma única pena, nos explicou que deveríamos manter o orquidário saudável e que um carro viria semanalmente buscar nossa produção e nos trazer mantimentos de acordo com os nossos próprios rendimentos. Nos explicou que, se passássemos por problemas, haviam duas estradas que levavam à lavouras próximas onde poderiam nos ajudar, e que se o problema fosse relativo a conjurações, que haveria um adepto veruniano de Idun vagando entre as lavouras e o orquidário todo dia.

Disse que poderíamos cunhar nossas próprias regras de trabalho, mas que não poderíamos abandonar o lugar sem autorização expressa da capital. Que estaria permitido a um de nós acompanhar o carro para a cidade murada de Lothair a leste, para onde as orquídeas estariam dirigidas. Que deveríamos enviar as orquídeas amarradas em buquês de cinco, postas em vasilhas d'água.

As interrogações ainda não abandonaram minha mente.