Leitura: A História de Hepzibah, parte 1

Hepzibah era um meio-djin que vivia incógnito no Monte Marena, em Ivoire. As centenas de anos de sua existência lhe tomaram as memórias de seus pais e das circunstâncias de seu nascimento. Sabia de suas fraquezas e que tinha vindo a um mundo que pertencia aos humas, não a ele. Sabia, também, que a visão de seu rosto despertava o terror nos pardos ivoreanos, quisesse ele ou não. Hepzibah tinha força em seu sangue djin, e era muito maior do que as pessoas normais, diferente da maioria dos meio-djins que era fraca e de baixa estatura.

Hepzibah odiava viver como um animal acuado, mas não conhecia escolhas. Permitia-se abandonar seu covil apenas nas noites mais escuras para tomar ar puro. Muitas vezes ele sentiu que estava sendo observado, e muitas vezes ele foi observado sem perceber nada. Sem que soubesse, as pessoas dos povoados próximos começaram a falar sobre um fantasma vermelho que vagava no Monte Marena.

Uma noite foi acordado por um estrondo. Seu covil fora invadido por adeptos ivoreanos em grandes números. Ele sentira o impulso de matá-los com as garras, mas ao ver suas expressões de terror, procurou acalmar-se e falar a eles. Os ivoreanos ouviram grunhidos e palavras rasgadas na língua profana dos djins. A face do inimigo parecia se retorcer de ódio. Os soldados começaram a disparar no djin, que berrava por clemência enquanto o fogo do seu próprio sangue saía para consumir seu corpo. Os ivoreanos ouviam só ódio, só esperavam ouvir ódio e só ouviram ódio. Hepzibah caiu inconsciente e morreria em poucos minutos.

Os ivoreanos não permitiram que ele morresse, no entanto. Levaram-no para Biblos onde ele passou por todo tipo de crueldade, exposição pública e ridículo. Sangrou fogo milhares de vezes diante de observadores entretidos. Um dia, furaram seus dois olhos. Hepzibah nunca mais viu as faces de seus captores mas sentia seus toques podres, socos e golpes de espada aos quais seguiam jorros das chamas de suas veias. Vivia sendo carregado dentro de uma cela, amarrado e algemado. Tentou encerrar sua própria vida muitas vezes, todas sem sucesso.

Um dia, ele pediu a Maeve para que o levasse, que o sanasse daquela existência eterna de sofrimento. Cego, aleijado e inútil, ele não poderia continuar nem que escapasse.

No dia seguinte, ele ouviu que os ivoreanos estavam pretendendo se livrar dele, porque um novo ministro achava que a exibição pública daquelas crueldades estava manchando a reputação das cidades. Lhe prepararam um último número. Parecia que sempre se perguntavam como um garuda comeria um meio-djin pegando fogo.

Uma arena lotada para sua despedida. Hepzibah foi largado no chão de areia áspera e a ave foi libertada. Uma grade protegia os observadores encantados com o espetáculo que viria. Os ivoreanos pareciam se deliciar com a idéia de um representante do segundo povo sendo subjugado por eles. Tomavam aquilo como uma vitória da civilização huma. Não eram adeptos de combates de arena daquele tipo, mas era certamente um caso especial. Uma execução de um criminoso de luxo, cujo único crime foi existir. Grande parte da nata da aristocracia ivoreana estava reunida no dia, inclusive algumas crianças que imploravam aos seus pais para ir embora.

Feixes de nuvens negras começaram a aparecer no céu azul-escuro, junto com uma calmaria que vinha do leste com suas luzes mudas. Hepzibah, com grande esforço, põs-se de pé, aterrorizando o público com seus olhos inexistentes em brasa.

"Faça com que seja rápido, Maeve."

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