Leitura: Nossa Dama Hierofante Else Gwen de Estelle, a Elmo Dourado

O conselho se tornou soberano mais uma vez sob o mando da Hierofante Else. Consta oficialmente que o imperador é Meredith, e acredito eu que continuará constando até que descubram que ele está morto, o que dificilmente acontecerá. É uma lei que existe desde a fundação e que prenuncia uma era teocrática em Odenheim. Meredith não teve filhos e a família real, em todas as suas dissindências, estava morrendo. Nada restavam senão filhos de impuros e barões distantes com um nada do dito 'sangue de santo'. Os aristocratas não estavam dispostos a coroar um ilegítimo novamente e possivelmente manifestariam repulsa se isso viesse a acontecer.

A Hierofante reduziu o Conselho do Palácio Oceânico a três pessoas: ela mesma, Aeolus dos Cães de Ferro, e Hepzibah dos Rebentos de Rachamarfim: os dois são até hoje líderes das duas maiores ordens militares de cavalaria odeniana. O povo chamava o conselho de Quimera de Três Elmos, ou simplesmente a Quimera. Else era um Elmo Dourado, Aeolus era o Elmo Escarlate e Hepzibah era o Elmo Cerúleo - as cores combinavam com os brasões de suas ordens.

A sala original do Conselho foi tombada como uma espécie de museu particular de Else, e ninguém mais entra lá a não ser os encarregados da limpeza do lugar. Nem os habitantes do Palácio Oceânico sabem, hoje em dia, se há um lugar oficial para a reunião do Conselho. Dizem que os três discutem o destino de milhões de pessoas enquanto andam pelos vastos corredores do palácio. Aliás, nada equipara-se à quantidade de histórias que as pessoas têm a contar sobre Else.

Nossa Dama Hierofante Else Gwen de Estelle, a Elmo Dourado, adepta prodigiosa, formou-se Mestra Celestial aos 22 anos, em História Maior aos 25, e tornou-se hierofante mostrando um controle absoluto e estranho sobre o avantesma de Lodis, superior aos mais antigos e experientes membros do clericato. Hoje, com vinte e nove anos, toma lições com um mestre-de-armas longiniano e já é reconhecida em torneios marciais como tendo um manejo poderoso das armas dos kishi. Sua espada Vergessenheit, uma daikatana pétrea esculpida em relevo chanteliano, é pesada e rápida como uma foice, mas nunca foi usada, somente em demonstrações, e em sua onipresença guardada na bainha às costas da Hierofante.

As pessoas que tratam com ela conhecem sua face atormentada pela insônia e por uma enxaqueca que a assola. O que ela sente muitas vezes parece se espalhar pelo ar e causar arrancos lancinantes de dor de cabeça nas pessoas ao redor, como uma maldição perpétua e maligna. Quando ela consegue dormir, é extremamente calma e amável, mas após três dias de insucesso na cama ninguém a procura. A ajuda de uma pequena comitiva de adeptos e médicos ocupa boa parte de seu tempo.

Não se sabe sob quais circunstâncias Else se tornou tão estimada por Meredith a ponto de ela se tornar sua braço-direito. Aristocratas contam que Else esteve com Meredith todo o tempo em sua saga trágica tentando obter um herdeiro, o apoiando e consolando em seus insucessos frequentes. Más-línguas dizem que os dois foram amantes, mas isso dificilmente foi verdade dado o tipo físico de Else comparado ao de Pluma e Ifalna, as duas mulheres que supostamente o duque teria amado: enquanto Else é loira, alta e austera, Pluma e Ifalna, ambas, tinham cabelos vermelhos, estatura média para baixa, e portavam a beleza e fragilidade clássica da aristocracia odeniana.

Por outro lado, Else não manifestou surpresa (nem outra qualquer reação aparente) quando Meredith foi dado como desaparecido pela primeira vez. Talvez ela seja a única pessoa no mundo que conheça seu paradeiro e suas intenções verdadeiras com sua migração repentina. A verdade é que o Duque se tornou uma espécie de figura mitológica, um rei-fantasma vagante que vigia as crianças brincando e que ninguém sabe se é bom ou mau. Poderiam compilar-se um livro dos grossos se todas as histórias contadas sobre ele, das reais às absurdas, fossem reunidas.

A única pessoa da aristocracia que, até hoje, tem como missão pessoal encontrar Meredith é Lorde Fabian de Tércia, ex-líder dos Leões Brancos (hoje Rebentos de Rachamarfim). Ele move diariamente uma pequena comitiva de Investigadores Reais atrás de todas as histórias e pistas sobre o Rei-Fantasma.

Enquanto isso, Else conduz Odenheim na maior revolução industrial já vista no mundo, ampliando a capital Lodis a níveis absurdos, construindo habitações para fantasmas e levando as linhas férreas a elas, sem que haja sequer alguém para subir e descer salvo as pessoas encarregadas das construções. Quando ela ordenou a construção de Nova Eiselc o Primeiro Distrito Aéreo, os aristocratas acreditaram que ela estava completamente insana, por estar construindo sobre andaimes um bairro inteiro e por ter batizado-o Primeiro Distrito Aéreo, o que indica que haverão outros.

Não há gente para morar nesses lugares. Na verdade, há muita gente se empilhando de qualquer jeito nos distritos favelizados de Teale, mas obviamente não é a eles que Nova Eiselc se destina. Os intelectuais odenianos imaginam que a ampliação de Lodis tenha a ver com a exploração de Calibur por grandes navios e a recente missão cartográfica enviada pela Quimera contando com uma tripulação pequena, porém muito capaz, inclusive o bem-aventurado capitão Klaas e o marinheiro lendário Braden de Gratien y Lake, que, entre outras coisas, foi o primeiro a chegar na costa do Gâm Flutuante, mapeou, com uma comitiva, todo o lado norte de Velha Iorque e, foi o que mais penetrou no Cinturão de Fogo, recuando estritamente para voltar com informações que, talvez, ajudem os próximos planinautas a investir contra o Mundo Difícil (ou nunca mais voltar lá).

Supõe-se que uma grande população será trazida para trabalhar, ou fazer alguma outra coisa, por Else. Por isso a capital está estendendo-se sem parar em detrimento do crescimento da indústria de outros setores, considerada de importância primordial pelos lodianos.

Sobretudo, a administração de Else não fica devendo à do 'Eterno e Justo' Dálfon Palas (que fez Odenheim crescer a quase duas vezes sua economia original do começo ao fim de seu período de regência) e à de Meredith, da qual ela parece ter se inspirado para seu próprio mandato quase megalomaníaco.

De quê você nos protege?

Minha marcha maldita encontrou a estrada e as profundezas do céu quando não havia luz senão a das montanhas. Eu tinha comigo apenas uma sacola de couro (que eu carregava a tiracolo), que tinha uma boa quantia em dinheiro, algumas mudas de roupa, uma túnica, um agasalho grande e um revólver de fecho de roda, dos bons. Todas as vezes que eu rezei para não ter de usá-lo, acabei usando.

Dei de cara com o adepto. Não vi sua silhueta ao longe: quando dei por mim, ele estava na minha frente. Não era mais do que um rapazola. O archote que carregava fulgurava em seus mantos verde-claros e lançava luz em seu rosto sob o grande chapéu. Tinha uma bainha às costas para um cajado com a parte de cima ornada com um símbolo heráldico e folhas de cobre, andava com grandes botas de cano alto, próprias para a neve, lama ou qualquer coisa que ele visse pela frente naquelas terras.

Seus olhos pousaram em mim esperando uma explicação.

"Se me permite uma pergunta", disse, a que ele assertiu, "de quê você nos protege?"

"Eu não protejo vocês. Eu protejo os outros, de vocês."

Leitura: Os Idos de Odenheim

Negada à luz e lançada à guerra, Odenheim perdera Ifalna Palas, desposada e destronada. Ascendeu, a 701 anos da fundação, Dário Meredith, Rei Negro. O cetro do poder não lhe lavara o olhar feroz e após trinta e dois anos de guerra ele expulsou os ivoreanos da costa de Odenheim, pondo fim a um conflito calamitoso. Fez-se silêncio quando a guerra terminou: todos os soluços haviam sido calados. Torres de ferro erguiam-se em meio à neve em Lodis e a respiração das máquinas talvez fosse ouvida a milhas. Meredith retornou num momento de silêncio e com um esgar feroz cruzou a capital até o Palácio Oceânico. Os cabelos grisalhos não lhe deram a imagem do pai Soren, como todos imaginavam que o seria. A humanidade recuara em suas feições até se tornar uma presença surda e nuclear. O reino agora era regido pelo deus da morte.

Pouco mais de setenta cavaleiros armados voltaram das Ilhas Sagradas, onde estrelas se apagaram quando o incarna de Câncer, com asas que abraçariam o mundo em vermelho tremeluzente, chocou-se contra as fileiras dos vingadores de Iblis ivoreanos. Lembrariam de Dário andando através dos campos de batalha e massacrando, a golpes únicos com o machado Labrys, qualquer um que se aproximasse, inimigo ou aliado, trazendo sobre todo o corpo uma aura estranha e divina. Após o fim do conflito, o incarna, assim como tudo o que se referia àquela guerra, foi esquecido pelos odenianos. Diz-se que seu herdeiro, após manifestar seu poder máximo e retornar à forma humana, foi executado por um soldado ivoreano que tinha sobrevivido.

Naqueles anos, Meredith se aliou aos adeptos e parece ter adquirido um forte e estranho respeito pela Deusa. Suas virtudes invertidas foram disseminadas pelos seus cavaleiros, e muitos feiticeiros emergiram e foram destruídos naquela época – a maior parte, pelo próprio Meredith, pessoalmente. E apesar da Ordem dos Elmos Escarlates estar severamente debilitada pela guerra, aquele era, sem dúvida, seu apogeu, comprovadamente a maior força militar conhecida de Natal. Em trinta e dois anos o povo aprendeu a viver sob a bandeira vermelha de Meredith: talvez por isso poucos tenham vindo velar a Rainha Ifalna Palas quando ela morreu, ainda tão jovem, acometida pela amargura e levando consigo o herdeiro do trono que ainda estava em seu ventre.

A vida em Lodis nunca fora tão difícil. Homens eram convocados e até trazidos de outras cidades para trabalhar em turnos de mais de dez horas nas carvoarias e indústrias da capital. O advento das linhas de montagem tornou Odenheim a maior potência bélica no mundo. O trabalho era interrompido três vezes ao dia para orações escritas e pregadas por Else, Hierofante de Lodis e a braço-direito de Meredith. Ela subiria à sacada dos reis e, sob os céus escuros de Lodis, chamaria todo o povo para lhes falar de parábolas, tormentos e fé. E enquanto oravam, as sombras da cidade pareciam crescer.

Passados alguns anos, Meredith deixara de falar em público e, com mais algum tempo, deixara também de fazer aparições. A Hierofante Else lhe representava, junto com uma comitiva de Elmos Escarlates e regentes escolhidos por ele. E assim que terminou a guerra, foram dadas armas a quase cinqüenta brigadas de Elmos Escarlates que tornaram-se a referência de lei em todo o território. Meredith desapareceu dentro do palácio, recuando para se entregar a planos e devaneios. Muitos imaginam que ele esteve esperando ou preparando o momento certo para atacar novamente, mas todos os aristocratas ouvem seus passos insones e febris à noite. A Deusa não permitira que Pluma Isabelle lhe concedesse um herdeiro: os adeptos finalmente constataram que ela era estéril. Meredith a trouxe em seus braços, vestida em robes brancos e dormindo para sempre. Seu rosto puro e belo subitamente reganhara a juventude e o frescor. Foi dito que seu espírito ascendeu aos céus fazendo com que todos na cidade chorassem sem saber dizer o motivo, mas ninguém nunca descobriu o motivo pelo qual Pluma Isabelle morreu.

Após este fato Meredith abandonou o Palácio sem data definida para voltar. Foi visto em vários lugares em Odenheim, armado de seu machado e vestindo uma longa capa branca, faminto, furioso e parecendo procurar algo. Ele foi motivo de desespero em várias vilas ribeirinhas quando descobriram que ele estivera observando, com uma espécie de ira amarga e contida, todas as crianças enquanto brincavam fora de suas casas.

O fim da guerra não significou descanso ou prosperidade. As linhas de defesa de Odenheim foram mantidas tesas e rígidas, enquanto as cidades viveriam em um perpétuo estado de pânico. Else era pior do que o próprio Meredith. Templos foram reconstruídos em aço com o trabalho braçal forçado de todo o povo, grandes pedras foram arrancadas das montanhas e arrastadas para a cidade, e caravanas perpétuas atravessaram as regiões setentrionais de Odenheim, onde foram erguidos novos templos e cidades. Segundo ela, os odenianos envergonhavam Meredith com sua atitude lasciva perante a vida e a Deusa. Músicos e tanques ficaram eternamente prontos em uma parada de proporções titânicas que receberia Meredith quando este voltasse. Em 733 D.F., quase um terço da população de Lodis foi enviada em uma capitânia com destino ao mundo de Caliburnus (Calibur) com o objetivo de erguer uma nova Lodis naquelas terras e espalhar a palavra de St. Sharini aos ignorantes.

Foi o ano em que os odenianos entraram em contato com os primeiros caliburanos, cujos olhos estreitos trouxeram lembranças ancestrais ao único reptante que participava da caravana de colonização. Infelizmente, dificuldades na comunicação e a arrogância de alguns capitães da caravana fez com que a atitude dos habitantes do novo mundo rapidamente se tornasse hostil aos visitantes e eles rapidamente perderam a comunicação com a capital. Um dos últimos relatos recebidos mencionava um avantesma ou incarna de brilho incomensurável invocado por um líder espiritual caliburano contra os invasores odenianos.

No hiato e apesar do fogo cruzado, com a derrota dos ivoreanos, os movimentos separatistas do vice-reinado ivoreano da União do Mar Alvo rapidamente ganharam força e, no mesmo ano que a guerra terminou, uma parte da União do Mar Alvo conseguiu sua independência e passou a ser novamente chamada Faris: a República Nova de Faris. A conquista deveu-se a breve e decisiva atuação do dragão Keshal de Lorena, que, de posse de um poder inexplicável, limpou sozinho as falanges ivoreanas de toda a costa leste original de Faris. Muitos tiveram certeza que ele esteve possuído pelo poder de Iblis durante aquele tempo, mas, assim como o incarna de Câncer, pouco mais se ouviu falar do Dragão Redentor.

As fronteiras de Ivoire e do vice-reinado recuaram para quase metade do seu tamanho original. Ainda abrangiam o Almirantado de Hevelius, o Planalto de Lorena e a cadeia de montanhas Aesir, mas uma renovada ordem dos Dragões da República parece preparar uma marcha vitoriosa sobre os enfraquecidos ivoreanos.