Leitura: Os Idos de Odenheim

Negada à luz e lançada à guerra, Odenheim perdera Ifalna Palas, desposada e destronada. Ascendeu, a 701 anos da fundação, Dário Meredith, Rei Negro. O cetro do poder não lhe lavara o olhar feroz e após trinta e dois anos de guerra ele expulsou os ivoreanos da costa de Odenheim, pondo fim a um conflito calamitoso. Fez-se silêncio quando a guerra terminou: todos os soluços haviam sido calados. Torres de ferro erguiam-se em meio à neve em Lodis e a respiração das máquinas talvez fosse ouvida a milhas. Meredith retornou num momento de silêncio e com um esgar feroz cruzou a capital até o Palácio Oceânico. Os cabelos grisalhos não lhe deram a imagem do pai Soren, como todos imaginavam que o seria. A humanidade recuara em suas feições até se tornar uma presença surda e nuclear. O reino agora era regido pelo deus da morte.

Pouco mais de setenta cavaleiros armados voltaram das Ilhas Sagradas, onde estrelas se apagaram quando o incarna de Câncer, com asas que abraçariam o mundo em vermelho tremeluzente, chocou-se contra as fileiras dos vingadores de Iblis ivoreanos. Lembrariam de Dário andando através dos campos de batalha e massacrando, a golpes únicos com o machado Labrys, qualquer um que se aproximasse, inimigo ou aliado, trazendo sobre todo o corpo uma aura estranha e divina. Após o fim do conflito, o incarna, assim como tudo o que se referia àquela guerra, foi esquecido pelos odenianos. Diz-se que seu herdeiro, após manifestar seu poder máximo e retornar à forma humana, foi executado por um soldado ivoreano que tinha sobrevivido.

Naqueles anos, Meredith se aliou aos adeptos e parece ter adquirido um forte e estranho respeito pela Deusa. Suas virtudes invertidas foram disseminadas pelos seus cavaleiros, e muitos feiticeiros emergiram e foram destruídos naquela época – a maior parte, pelo próprio Meredith, pessoalmente. E apesar da Ordem dos Elmos Escarlates estar severamente debilitada pela guerra, aquele era, sem dúvida, seu apogeu, comprovadamente a maior força militar conhecida de Natal. Em trinta e dois anos o povo aprendeu a viver sob a bandeira vermelha de Meredith: talvez por isso poucos tenham vindo velar a Rainha Ifalna Palas quando ela morreu, ainda tão jovem, acometida pela amargura e levando consigo o herdeiro do trono que ainda estava em seu ventre.

A vida em Lodis nunca fora tão difícil. Homens eram convocados e até trazidos de outras cidades para trabalhar em turnos de mais de dez horas nas carvoarias e indústrias da capital. O advento das linhas de montagem tornou Odenheim a maior potência bélica no mundo. O trabalho era interrompido três vezes ao dia para orações escritas e pregadas por Else, Hierofante de Lodis e a braço-direito de Meredith. Ela subiria à sacada dos reis e, sob os céus escuros de Lodis, chamaria todo o povo para lhes falar de parábolas, tormentos e fé. E enquanto oravam, as sombras da cidade pareciam crescer.

Passados alguns anos, Meredith deixara de falar em público e, com mais algum tempo, deixara também de fazer aparições. A Hierofante Else lhe representava, junto com uma comitiva de Elmos Escarlates e regentes escolhidos por ele. E assim que terminou a guerra, foram dadas armas a quase cinqüenta brigadas de Elmos Escarlates que tornaram-se a referência de lei em todo o território. Meredith desapareceu dentro do palácio, recuando para se entregar a planos e devaneios. Muitos imaginam que ele esteve esperando ou preparando o momento certo para atacar novamente, mas todos os aristocratas ouvem seus passos insones e febris à noite. A Deusa não permitira que Pluma Isabelle lhe concedesse um herdeiro: os adeptos finalmente constataram que ela era estéril. Meredith a trouxe em seus braços, vestida em robes brancos e dormindo para sempre. Seu rosto puro e belo subitamente reganhara a juventude e o frescor. Foi dito que seu espírito ascendeu aos céus fazendo com que todos na cidade chorassem sem saber dizer o motivo, mas ninguém nunca descobriu o motivo pelo qual Pluma Isabelle morreu.

Após este fato Meredith abandonou o Palácio sem data definida para voltar. Foi visto em vários lugares em Odenheim, armado de seu machado e vestindo uma longa capa branca, faminto, furioso e parecendo procurar algo. Ele foi motivo de desespero em várias vilas ribeirinhas quando descobriram que ele estivera observando, com uma espécie de ira amarga e contida, todas as crianças enquanto brincavam fora de suas casas.

O fim da guerra não significou descanso ou prosperidade. As linhas de defesa de Odenheim foram mantidas tesas e rígidas, enquanto as cidades viveriam em um perpétuo estado de pânico. Else era pior do que o próprio Meredith. Templos foram reconstruídos em aço com o trabalho braçal forçado de todo o povo, grandes pedras foram arrancadas das montanhas e arrastadas para a cidade, e caravanas perpétuas atravessaram as regiões setentrionais de Odenheim, onde foram erguidos novos templos e cidades. Segundo ela, os odenianos envergonhavam Meredith com sua atitude lasciva perante a vida e a Deusa. Músicos e tanques ficaram eternamente prontos em uma parada de proporções titânicas que receberia Meredith quando este voltasse. Em 733 D.F., quase um terço da população de Lodis foi enviada em uma capitânia com destino ao mundo de Caliburnus (Calibur) com o objetivo de erguer uma nova Lodis naquelas terras e espalhar a palavra de St. Sharini aos ignorantes.

Foi o ano em que os odenianos entraram em contato com os primeiros caliburanos, cujos olhos estreitos trouxeram lembranças ancestrais ao único reptante que participava da caravana de colonização. Infelizmente, dificuldades na comunicação e a arrogância de alguns capitães da caravana fez com que a atitude dos habitantes do novo mundo rapidamente se tornasse hostil aos visitantes e eles rapidamente perderam a comunicação com a capital. Um dos últimos relatos recebidos mencionava um avantesma ou incarna de brilho incomensurável invocado por um líder espiritual caliburano contra os invasores odenianos.

No hiato e apesar do fogo cruzado, com a derrota dos ivoreanos, os movimentos separatistas do vice-reinado ivoreano da União do Mar Alvo rapidamente ganharam força e, no mesmo ano que a guerra terminou, uma parte da União do Mar Alvo conseguiu sua independência e passou a ser novamente chamada Faris: a República Nova de Faris. A conquista deveu-se a breve e decisiva atuação do dragão Keshal de Lorena, que, de posse de um poder inexplicável, limpou sozinho as falanges ivoreanas de toda a costa leste original de Faris. Muitos tiveram certeza que ele esteve possuído pelo poder de Iblis durante aquele tempo, mas, assim como o incarna de Câncer, pouco mais se ouviu falar do Dragão Redentor.

As fronteiras de Ivoire e do vice-reinado recuaram para quase metade do seu tamanho original. Ainda abrangiam o Almirantado de Hevelius, o Planalto de Lorena e a cadeia de montanhas Aesir, mas uma renovada ordem dos Dragões da República parece preparar uma marcha vitoriosa sobre os enfraquecidos ivoreanos.

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