Leitura: Belgrade do Norte

Meu amigo de longa data, Dr. Natanael, médico real de Odenheim e um conjurado de Outros Mundos, há muito escreveu esta pequena história sobre sua aventura diplomática em Belgrade do Norte, há quase quarenta anos atrás. Vale ler.

"Em tempo: fui conjurado, não sou daqui. Se você me perguntasse há precisamente seis anos atrás, eu diria que toda essa história de Maeve, altíssimos e povos de luz, fogo e terra é completamente nova para mim. O mais interessante é que pouco a pouco esqueço da minha existência anterior e parece enraizada no meu coração a idéia de que nasci sob uma estrela, em um país em que neva durante a maior parte do ano. Poderia discorrer longamente sobre o que aconteceu comigo, e como aconteceu comigo, mas isso talvez seja assunto para outra hora.

Alguns anos após minha chegada, eu havia angariado uma soma grande em rúpias como médico no Palácio Oceânico, em Odenheim. Resolvi viajar o mundo de trem, talvez cansado de ouvir as pessoas falarem sobre coisas que eu não conhecia. Conheci os lagos mais belos de Cédara, e os lagos mais serenos de Longinus. Conheci as savanas e cheguei a ver um garuda de perto em Ivoire. Vi as máquinas rebumbando no Almirantado de Hevelius e conheci o deslumbre de Belgrade, a metrópole. Encontrei pessoas que conhecia de outras paragens (na verdade, Outros Mundos) e, por força da amizade, em Belgrade fiquei, ao menos por um tempo.

Minha presença não demorou para ser notada. Como médico real de Odenheim, fui chamado como convidado ilustre para assistir à inauguração do chamado “Sonho Farisiense”: Belgrade do Norte e suas torres de ouro. Para tanto, pediram-me que me hospedasse e esperasse duas semanas no Chateau Leonius, o melhor hotel da cidade. Enviei um telegrama ao agora saudoso Rei Dálfon Palas, Eterno e Justo, avisando de minha demora. Em resposta, um pedido para que ficasse e representasse Odenheim diplomaticamente na inauguração. Fiquei.

Na abóbada do salão principal do hotel, havia uma gigantesca pintura a óleo das torres de Belgrade do Norte, como eram, seriam, ou deveriam ser. Sobre várias mesas compravam-se e vendiam-se terras em Belgrade do Norte, homens ricos pensando em filhos e netos. E todo dia, da janela do quinto andar do hotel, eu via saindo as caravanas com tudo que os trabalhadores precisavam para lá. Foram duas semanas em que tudo que se falava tinha relação com Belgrade do Norte. Aproveitei para permanecer mais tempo com meus amigos, talvez a única coisa que me ligasse ainda às minhas origens. Entretanto, findaram as duas semanas e meu trem partiria para o “Sonho Farisiense”.

Despedi-me, prometendo voltar a encontrá-los. As luas mostravam o caminho por entre árvores e cascatas, negras na noite. Vi o Hierofante Ludgast impaciente, vi os ministros ivoreanos levando o pequeno rei Azi, vi a estupenda, a belíssima Natasa Musa sendo cantada pelo Kyriakos, vi Iamni de Veruna, Rudelger de Biblos, vi a jovem Ifalna, linda filha de Dálfon, vi astrônomos cedarianos discutindo com adeptos odenianos, entre outras visões não menos admiráveis, tudo dentro de um único trem. Lembro que imaginei o tamanho da perda que Natal teria se um garuda subitamente abalroasse aquela máquina de ferro. Hoje sei que não existem mais garudas em Faris, mas no dia posso jurar que tive receio.

Belgrade do Norte, o Sonho Farisiense.

A uma hora e meia de trem de Belgrade.

Uma decepção. Olhei pra trás e vi gente esfregando os olhos. Nossa anfitriã, Marquesa Isolda, estava à beira de chorar. A nata dos reinos estuporada diante de um colossal buraco no chão, com andaimes aqui e ali. Fomos recebidos por uma comitiva encabulada de engenheiros com capacetes de lanterna. Isolda parecia querer se atirar no buraco. Eles garantiram a ela que dali a mais duas semanas o projeto estaria pronto, e ela olhou para nós todos, com os olhos marejados de lágrimas.

Suponho que eu não fosse, ao menos no momento, tão importante para o Palácio Oceânico. O Rei Dálfon não somente permitiu, como também insistiu para que eu ficasse mais duas semanas e visse Belgrade do Norte. Fui instruído, também, a acompanhar a jovem Ifalna. Alguns astrônomos também ficaram, e também alguns adeptos. Mas todos os ivoreanos, à notável exceção da Madame Natasa, voltaram para seu império.

A Marquesa Isolda ausentou-se completamentre do Chateau Leonius durante as duas semanas seguintes. Fui a teatros, bibliotecas, e conferenciei um tanto mais com meus velhos conhecidos. Apresentei a jovem Ifalna a alguns deles e mostrei a cidade a ela. Acredito que ela tinha quinze anos na época.

Era o penúltimo dia e jantávamos na sala de conferência do Leonius quando Isolda irrompeu pelas portas, com ar cansado e triunfante. Dirigiu-nos um olhar de aprovação, suspirou e, sem palavras, subiu as escadas para dormir o sono sem sonhos dos mártires.

O trem partiu com muito menos animação do que o anterior, um dia antes do previsto. Odenianos, só éramos “eu”, Ifalna e dois adeptos. A jovem princesa adormeceu no banco do trem, a cabeça jogada para trás, espalhando os cabelos muito vermelhos sobre o veludo verde-escuro dos bancos. Viria a ser uma mulher linda, pensei. Hoje não tenho vergonha de dizê-lo a ela.

Desembarcamos e era quase meia-noite. Vimos de longe a cidade toda iluminada. E desta vez, foi fantástico. Havia música, dançarinas com plumas, grandes letreiros luminosos, e realmente haviam torres de ouro, cassinos, palacetes. Um picadeiro ao ar livre no centro da cidade, e um espetáculo de balé com orquestra para receber-nos. A melhor hospedagem que já tive o prazer de desfrutar, a melhor comida, pensei em voltar à essa cidade três vezes ao ano, quatro talvez. Ifalna lutava para manter-se acordada apesar da música alta, e tentava prestar atenção em tudo. Minhas palavras não podem descrever o momento e a beleza que a cidade estava.

Nos próximos dias, a rotina se repetiu. A música não parava por um segundo sequer. Guitarras elétricas, orquestras sinfônicas, o tal do jazz nas esquinas, os concertos, tantos concertos. Acho que havia pelo menos duas companhias encenando cada peça que já foi escrita desde o início dos tempos em Natal, todo dia. Uma fábula. Mas claro, depois de três dias me senti completamente exausto e decidi voltar, independente das ordens de Dálfon.

Deixei uma carta de parabéns para Isolda e desejei-lhe “sucesso absoluto e eterno”. Se me lembro bem, foram essas mesmo as palavras que usei. A Princesa Ifalna reclamou um pouco de ir embora, mas no fundo, também estava com saudades de Odenheim, depois de um mês inteiro longe de casa. "

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