Leitura: O Almirantado de Hevelius

Eram tempos em que a República Livre de Faris não havia sido dominada, nem destruída. Francamente, ela mal havia sido construída; não importam o que dizem os papéis. Belgrade do Norte era um sonho para alguns. Calcedona era só o farol solitário olhando sobre o mar. Glenária já existia, e recebia às vezes um ou outro odeniano procurando paragens novas ou fugindo dos imperadores. Foi na mesma época em que o marquês Kachaturian pisou aqui pela primeira vez, exilado por Soren Meredith.

A baía de Velian era famosa entre os planinautas. Nem meteoros afundaram tantas capitânias promissoras quanto seus traiçoeiros corais, certos e letais como minas aquáticas. E ela era inevitável em muitas rotas. Bateram e afundaram tanto que dois malandrões instalaram um guincho lá.

Seus nomes eram Dea Luken e Sotiris de Asa Azul. Luken era um poeta desacreditado, recém-formado da Universidade de Lodis, que desistiu das letras porque acreditava que uma grande idéia como a sua podia ganhar uma vida melhor do que alguns livros. Abandonou tudo de seu passado para fazer sua viagem de negócios para a Baía de Velian. Sotiris era primo distante de Luken, um garoto esperto do campo. Desprezava livros e confiava na própria cabeça. Era bom de contas. Diz-se que sabia a tabuada completa até trinta.

O guincho, um dos primeiros de Faris, e com certeza era algo de dar medo, aquela torre de metal trançado contra a sombra da noite. A retirada do navio não era de graça. Como a batida quase sempre era feia e boa parte da mercadoria ia pro fundo do mar, Luken e Sotiris cobravam o que havia à mão. Díesel, timões, turbinas, esporões, estátuas, tudo tinha um valor. Eles revendiam mais caro para quem precisava e saíam com uma grana.

Havia quem dissesse que toda noite um dos dois tomava um trem, para depositar as cédulas em um banco em Belgrade. Havia quem dissesse que eles iam junto com a carga, pra poupar o dinheiro de passagem. Os garotos tinham espírito de empreendedores.

Houveram vários assaltos no Guincho de Velian, todos infrutíferos. A qualquer dado momento, só havia lá uns tratores, um ou outro barranco recém-escavado, vários planinautas acampados, e pilhas de tralha metálica. Os piratas, mais ou menos ousados, não levavam nada. Um ficou amigo de Sotiris e passou a trabalhar lá.

A sorte dos companheiros, porém, iria mudar. Quando eles começaram a se permitir noitadas mais longas, vieram os ivoreanos. Como diz o ditado, o chão que os ivoreanos pisam, vira merda. O Império Sagrado de Ivoire tinha interesse na madeira de Faris e exigiu ao conselho que dessem um jeito naquela rota, e por que não, naquele guincho. Ia rolar muito dinheiro, liberação, influxo de capital, era perfeito para que construíssem uma segunda Belgrade, para que dessem palacetes para mais umas duas dúzias de nobres. O conselho aprovou.

No dia seguinte, Luken, Sotiris, Madai – o pirata – e um séqüito de planinautas assistiu um trem descarregar, talvez, vinte trabalhadores. Dinamitaram os corais. Desmontaram o guincho sob protestos.

O Almirantado de Hevelius veio um mês depois quando chegaram alguns aristocratas cansados. No começo uma torre, mas a passagem dos navios e os impostos cobrados pelas passagens rendeu um castelinho e alamedas bonitas no centro da cidade. O barranco e o lugar aonde ficava o guincho ficaram desabitados da noite pro dia.

Sotiris era um garoto do interior, de uma das vilas sem estrela nas bases das montanhas de Aesir. Bem-nascido, tinha sua casa para voltar quando quisesse. E quis; pegou sua metade do dinheiro e nunca mais se ouviu falar dele.

Luken não tinha para onde voltar. Brigou com os pais, com a noiva, com a Deusa e o mundo por causa de seu sonho de metal trançado, tão rapidamente arruinado. Tinha metade de uma pequena fortuna em mãos e nenhuma perspectiva pela frente. Apesar da inesperada reprovação de Madai, montou um cassino luxuoso que foi à bancarrota mais rápido do que uma roleta poderia girar. Mandou tudo à merda e foi beber e jogar pelos bares da República. Sem Sotiris, era só ímpeto e idéia – lhe faltavam a racionalidade e o planejamento inteligente do amigo.

Morria de medo de morrer e ter que justificar para a Deusa ter ficado torcendo pra tantos barcos afundarem.

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