Leitura: A História de Bácari e Trói

Haviam praias, haviam peixes, haviam pescadores. Haviam Bácari e Trói, desde muito. Os antigos acompanhavam os cardumes por terra e migravam pela costa leste da República. Levou muito tempo até que alguns pontos fossem descobertos como de convergências de vários tipos de peixe ao longo do ano. Na verdade, foram descobertos dois destes paraísos da pescaria: Bácari e Trói, obviamente.

Os nomes vieram das duas espécies de peixe que mais apareciam nas imediações, o Bacará Real – grande, cinza e lento – e o Totrói – com a protuberância óssea no focinho que mais parece uma espada.

Os pescadores ficavam metade do ano em Bácari, metade do ano em Trói. Muitos tinham uma namorada em cada cidade. Alguns tinham uma família em cada cidade. Muitos tinham pouca ou nenhuma idéia de quem era seu pai, mas as cidades prosperavam e todo mundo se conhecia. Fizeram escolas em Bácari, um pequeno teatro em Trói, e já vinha uma geração daqueles que estudaram fora, poetas, médicos, engenheiros, que voltavam para trabalhar nas suas cidades de origem.

Na época em que os ivoreanos investiram na madeira de Faris, o conselho em Belgrade decidiu que seria interessante para o futuro do país que existisse uma grande ferrovia ligando Glenária e Bácari.

O conde de Trói fez um escândalo. Alegou que Trói era muito mais tradicional, que a população era maior, que era completamente ilógico levar os trens para Bácari quando Trói estava ali, mais perto e mais interessante. A população fixa e simples não entendeu muito bem a história da ferrovia e no mais, eles queriam que os bacarenses se ferrassem, mesmo.

O barão de Bácari prontamente iria se defender dos argumentos do outro, mas aí ele soube que o plano da Estação Ferroviária Primeira de Bácari colocava o prédio bem no lugar onde atualmente ficava sua mansão com jardim de inverno. Entretanto, ele foi forçado a manter sua posição pelos intelectuais de Bácari, que queriam a ferrovia e ameaçavam amotinar-se sobre o barão.

Como tudo que acontece em Faris, os Dragões da República foram chamados para mediar o impasse. Descobriram que cada cidade tinha um conjunto diferente de virtudes e defeitos, mas nenhuma era melhor do que a outra em absoluto. Um Dragão jovem chegou a sugerir que decidissem o destino da ferrovia tirando a sorte nos dados, mas ninguém deu ouvidos a ele. Grande erro.

Ficou acertado (bem à moda dos Dragões) que haveria uma competição entre quatro espadachins – dois representando cada cidade. Quase todos os pescadores não tinham quase treinamento, em absoluto, com a espada, e se perguntaram se não seria mais interessante uma competição de pescaria. Depois alguém lembrou que ninguém realmente morava em um só lugar entre os pescadores e iria ficar difícil escolher que lado iriam representar. De fato, os pescadores nem foram consultados a respeito da tal ferrovia.

Surpreendentemente, os escolhidos para defender Bácari foram dois jovens filhos de um pescador que lá residia, enquanto os escolhidos de Trói foram o irmão do conde, Guntram de Trói, um aventureiro jovem e forte que bandeava com os dervixes do norte, e Nila, uma adepta estrangeira que fez de Trói seu lar.

Guntram e Nila destruíram os escolhidos de Bácari facilmente, primeiro a golpes calculados com as espadas de bambu, depois a pauladas mesmo, já que eles não se rendiam. Os filhos de pescador de Bácari foram arrastados, inconscientes, do ringue improvisado armado perto do Poço das Botas. Fazia um sol rachante.

No dia seguinte, festa em Trói. O conde anunciava ao populacho as melhoras que a ferrovia traria (e depois de um tempo, basicamente do quê se tratava, já que todos estavam interessados). A bebida corria solta, ninguém trabalhou, os peixes dentro d`água até estranharam o fato de não ter havido o genocídio diário. Todos os troianos ficaram animados com as obras, com os trens, e com a nova possibilidade: viajar.

Quando anoiteceu, um grupo compacto de Dragões e citadinos de Bácari chegou na cidade, para falar diretamente com o conde. Quem viu, das casinhas com as lamparinas acesas, viu que boa coisa, não era.

O conde voltou pra casa cheio de amargura no coração. O torneio havia sido considerado inválido, porque o barão de Bácari conspirou contra a própria cidade colocando filhos de um pescador no torneio ao invés dos grandes espadachins da Academia Real de Heilwig de Espada Odeniana, que, apesar de pequena e recém-chegada, contava com um bom número de esgrimistas talentosos. Como todo bom filho, Guntram tomou as dores do pai. Juntou seus amigos dervixes e num ato maligno de vingança, fizeram um arrastão na costa, no meio-caminho entre Trói e Bácari, justamente na época da reprodução dos bacarás.

Surpreendentemente, ninguém soube do crime a princípio. Mas sua conseqüência foi muito pior do que o esperado. A escassez atacou Bácari com violência e quase todas as famílias vieram para Trói. O preço do peixe inflacionou de uma maneira incrível, e ninguém queria passar fome; além do mais, muitas mulheres encontraram as “outras” e saiu porrada pela cidade inteira. Mais além do mais, Guntram, completamente bêbado, admitiu ter passado a rede nos bacarás e escapou por pouco de morrer na mesma noite. Depois que a notícia se espalhou, botaram fogo na casa do conde. O caos se espalhou pela cidade toda. A Guerra do Peixe durou três dias e duas noites.

Quando a poeira baixou, Trói estava em destroços. Quem não assumisse um lado da briga era considerado covarde e não era bem-vindo em nenhuma das cidades. Quem fosse de Trói, não entrava em Bácari, e vice-versa. Muitos pescadores tiveram que escolher entre dois amores e até hoje não sabem se fizeram a escolha certa. Outros têm certeza. Outros estão morrendo para voltar e não podem.

A ferrovia não foi construída e não se voltou a falar no assunto. Tiveram rumores de que nunca houve projeto de ferrovia alguma. Mas o problema de Bácari com Trói tornou-se folclórico e os moradores de uma cidade falam horrores dos moradores da outra.

Guntram e seu pai, depois do incêndio e ao que tudo indica, mudaram-se para Belgrade do Norte assim que a cidade foi construída. O garoto cresceu, e por fim se arrependeu do que fez, mas já era tarde.

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